Crise política na quarentena: Fórum Econômico filmado para o cinema pela primeira vez em 50 anos

“Se eu for eleito não haverá um centímetro demarcado para reservas indígenas e quilombolas”, frase de Bolsonaro que está no inédito "O Fórum" de Marcus Vetter, que estreia dia 20 de agosto

“O Fórum” de Marcus Vetter (Divulgação)
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Por Filippo Pitanga*

“Se eu for eleito não haverá um centímetro demarcado para reservas indígenas e quilombolas” – frases como esta demonstram como o atual presidente eleito Jair Bolsonaro não apenas vem cumprindo as promessas mais ameaçadoras para o futuro da Nação, bem como indo muito além das promessas de campanha... Esta frase verídica está dentre as imagens de arquivo utilizadas na primeira obra autorizada a filmar no Fórum Econômico Mundial de Davos em seus 50 anos de história: o inédito “O Fórum” de Marcus Vetter, que estreia dia 20 de agosto nas plataformas digitais brasileiras pela O2 Play. – E a presente coluna de cinema na Revista Fórum recebeu acesso exclusivo à primeira exibição do filme, sobre o qual adiantamos um pouco para vocês.

E é bastante catártico ressuscitar logo agora estes discursos premonitórios tanto de Bolsonaro quanto igualmente de Trump, outro infame personagem deste longa-metragem, nas edições de 2018 e 2019 do evento anual na Suíça. Eles retornam com o poder do cinema justamente quando não apenas nosso futuro, como nosso passado está sendo caçado pela atual administração federal. Já havíamos reportado semana passada nesta coluna sobre a tomada de chaves arbitrária da Cinemateca Brasileira (leia aqui), e, no decorrer da semana, o desmonte da memória do nosso cinema prosseguiu com a demissão de todos os funcionários especializados na preservação de nossas obras, bem como o site já foi tirado do ar mais de uma vez (voltando cada vez com mais alterações e problemas). Sem falar na perseguição da Ancine (Agência Nacional do Cinema) aos cineastas em atividade, questionando prestações de contas não apenas já entregues há anos atrás, como, inclusive, já prescritas – não mais passíveis de discussão judicial, muito menos sob a égide de novas determinações que não poderiam retroagir negativamente a contas já encerradas, por previsão legal.

Por isso, talvez seja mais importante do que nunca olhar para trás e tomar consciência devida dos passos trilhados até aqui, justamente para podermos exigir reparação dos danos deixados pelo caminho. Ainda mais em se tratando do Fórum Econômico Mundial, que a cada edição vem tentando tomar um pouco mais de posicionamento perante a responsabilidade social em nível global para o porvir, visto que reuniu por décadas os maiores governantes do planeta e as megacorporações privadas em conferências de como lucrar mais às custas do nosso planeta. Então, frases como a que inicia esse texto, quando nosso presidente evocava impunemente o loteamento de nossas terras indígenas e quilombolas, tudo livre para o agronegócio e empresas mineradoras, podem até já soar como horror atordoante para os brasileiros, mas deveria transparecer como terror urgente para o restante do mundo. Não há como simplesmente ficar sentado observando os crimes que estão sendo cometidos em nosso próprio país, contra cidadãos e as riquezas naturais do território.

O organizador do evento, Klaus Schwab, também o principal entrevistado do documentário que serve como espinha dorsal, e interlocutor para nos explicar do que se trata a abordagem do filme, até que fala bonito. Parece estar despertando para sua responsabilidade pessoal nisto tudo com frases do tipo: “O salário de um diretor de empresa não deveria ultrapassar 20 vezes a média de seus funcionários, e hoje em dia ultrapassa em 200 a 300 vezes isso”. Porém, ao mesmo tempo, evidente que focar demais apenas na personalidade central da intrincada trama da economia mundial pode parecer auto indulgente... E é aí que entram pelo menos duas outras personagens que contrapõem os pontos de Schwab como muitas vezes ingênuos e noutras até desproporcionalmente inconsequente. São elas a jovem Greta Thunberg, a ativista climática mais famosa ao redor do globo atualmente, e Jennifer Morgan, representando o Greenpeace anualmente nestas conferências.

A participação das duas e de mais algumas outras pessoas bem intencionadas vem acompanhada de frases de efeito como “Se não controlarmos o consumo sustentável, teremos mais plástico do que peixes no oceano muito em breve”; ou mesmo “O que deu errado? Como é que a criatura mais intelectual que já caminhou neste planeta está destruindo a sua única casa, destruindo o ambiente e causando todas estas desigualdades em nossas sociedades? Nós quebramos a ligação entre intelecto e sabedoria. Tivemos o crash financeiro em 2008, agora nós vimos a ascensão dos populistas ao redor do globo: Trump, Bolsonaro, o Brexit... E o que me dá grande esperança neste momento é que há uma nova geração que está, na verdade, acordando. Que não acredita mais no mito de que a grande desigualdade que vemos hoje é apenas uma força da natureza. As pessoas estão acordando e percebendo que venderam uma mentira para elas”.

O curioso é que o sequenciamento lógico das cenas revelam mais nos fracassos, omissões e descontinuidades nas missões de Schwab do que nas realizações presencialmente enunciadas na tela, através de diálogos expressos ou entrevistas no estilo “talking heads” (como se diz no documentário quando se entrevista as pessoas cara a cara, ou simplesmente como “cabeças falantes”). Isto se demonstra pelo trabalho com imagens de arquivo, como o encontro mediado em Davos anos atrás entre o Primeiro-Ministro Israelense Ariel Sharon e o Líder Palestino Yasser Arafat, o qual resultou num “divórcio definitivo das negociações de paz (como é denominado no próprio filme); bem como a participação da Primeira-Ministra de Myanmar Aung San Suu Kyi que se viu obrigada a quebrar o silêncio e justificar a morte e expulsão de milhares de pessoas do seu país.

O filme teria muito mais a ganhar com um olhar opositivo e mais irônico em relação às condescendências naturais de trocas burocráticas deste porte (porém, também, se o fizesse, talvez jamais houvesse obtido autorização de filmagem onde jamais antes as câmeras foram permitidas). E, mesmo que as filmagens até tenham conseguido um bom espaço de autorização para registrar, ainda assim havia obstáculos e limites, quando o mesmo aparentemente solícito Schwab assentia com a vontade de poderosos, como o diretor do Banco Central Britânico, e dispensava as câmeras para não saber o que eles estavam acordando com a China em nome do Brexit. Nisto, seguindo os ensinamentos do grande autor Jean-Louis Comolli em seu texto sobre “Como filmar o inimigo”, talvez o diretor alemão Marcus Vetter pudesse não apenas filmar a situação política brasileira, a partir da participação de Bolsonaro no filme, como ainda aprender muito com os documentários brasileiros de vanguarda que elevaram os estudos de Comolli para novos patamares e com reconhecimento mundial – como os recentes multipremiados “No Intenso Agora” de João Moreira Salles ou “O Processo” de Maria Augusta Ramos.

Por fim, quem brilha além da pequena Greta Thunberg é a participação especial do ex-político norte-americano e grande ativista climático Al Gore, que possui a maior cena do filme ao contestar e desafiar o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Este colapsa ante sua própria inabilidade de ter qualquer diálogo com as principais necessidades não apenas do Brasil, como do mundo (sob uma apropriada trilha sonora de vilão de filme de terror). Alguém em desalinho total com quaisquer demandas necessárias para que o mundo possa sobreviver ao colapso inevitável que esse modo de vida predatório irá levar o planeta. Nas palavras da própria Greta: “Os adultos dizem que devem às crianças lhes dar esperança. Mas eu não quero a sua esperança, eu não quero que vocês fiquem esperançosos. Eu quero que entrem em pânico. Sintam o medo que eu sinto todos os dias. E depois eu quero que vocês ajam como se nossa casa estivesse pegando fogo. Porque está”.

Veja o trailer do filme aqui.

Serviço: “O Fórum” de Marcus Vetter. A partir de 20 de agosto: APPLE TV+ (iTunes); Google Play; Vivo Play; Now; Looke.

*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema