Documentário “Danças Negras” expõe paradoxos de um Brasil ainda racista, por Carlos Minuano

A seleção dos entrevistados no filme cumpre o papel de ampliar o debate sobre um assunto complexo e cheio de transversalidades

Foto: Divulgação
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Por Carlos Minuano* “Nós não somos descendentes de escravos, somos descendentes de seres humanos negros que foram escravizados”, afirma Valdina de Oliveira Pinto, mais conhecida como Makota Valdina. A declaração da líder religiosa do candomblé, educadora e ativista da cultura afro-brasileira, que morreu em 2019, foi dada ao documentário “Danças Negras”, dirigido por João Nascimento e Firmino Pitanga. É um filme sobre arte, como o título já indica, mas que expõe também os paradoxos gritantes de uma sociedade ainda racista. O longa, inédito, terá uma exibição especial gratuita na próxima segunda, 3 de fevereiro, no CineSesc em São Paulo, às 19h30. Em seguida haverá um bate-papo com os diretores. Logo nos primeiros minutos percebe-se que o documentário não se restringe à dança. “É sobre os caminhos poéticos das artes negras na luta antirracista”, define o diretor João Nascimento. É nesta direção que o filme aponta, colocando em discussão a relevância da cultura e das danças de matrizes africanas no Brasil e do racismo que ainda enfrentam no país. O tema vai se abrindo em suas muitas camadas, que se revelam e se complementam a partir dos depoimentos de dezenas de entrevistados, como o bailarino norte-americano Clyde Morgan, a artista Raquel Trindade, a crítica de dança Helena Katz, o escritor e ativista cubano Carlos Moore e o percussionista Dinho Nascimento. O diretor João Nascimento conta que a ideia de fazer o filme surgiu por volta de 2014, quando a companhia de arte negra “Treme Terra”, da qual ele é fundador, articula um movimento em torno da democratização e popularização dos recursos públicos e do acesso dessas artes de matrizes africanas, em programas de fomento à dança, na cidade de São Paulo, e em outras políticas públicas de âmbito nacional. A provocação do grupo começou a despertar reflexões e questionamento sobre a descolonização no ambiente das artes, tema que se tornou um dos eixos centrais do documentário. “Em busca de nossas origens, fomos pesquisar nossas matrizes negras, para compreender o passado, dançar o presente e sonhar com um futuro mais do nosso jeito”, conta Nascimento. Equilibrado, sem se perder por extremos, o filme realiza um mergulho na ancestralidade de movimentações estéticas, políticas e sonoras, oriundas das diásporas africanas no Brasil e de outros desdobramentos urbanos. A seleção dos entrevistados cumpre o papel de ampliar o debate sobre um assunto complexo e cheio de transversalidades, enriquecendo a discussão com diferentes pontos de vista. É o caso por exemplo do bailarino norte-americano Clyde Morgan. Antigo integrante do bloco Afoxé Filhos de Gandhi – se tornou sócio na década de 1970 – e ogã no candomblé, é hoje uma figura conhecida em Salvador. Estudioso das artes de origem africana, é considerado um importante pensador do papel delas no desenvolvimento da dança nos Estados Unidos e no Brasil.  “A cultura negra não tinha espaço nem nas escolas de danças”, comenta o coreógrafo. Apartheid e sub-representação Outro ponto sensível tratado no filme é um suposto “apartheid” no meio acadêmico, ambiente que, segundo entrevistados, há décadas reproduz modelos segregacionistas, de maneira semelhante ao regime na África do Sul, que em 1966 tornou exclusiva aos brancos uma área central na Cidade do Cabo. Uma das vozes nessa discussão é a da crítica de dança Helena Katz. “A sociedade e a universidade vão na mesma direção”. Segundo ela a consolidação da dança contemporânea a partir da década de 1990 é um exemplo disso, porque foi ilhando as danças negras até que elas desaparecessem por completo. Mas a questão extrapola a dança, como aponta o antropólogo congolês Kabengele Munanga, também entrevistado no filme. “Quantos negros estão nas universidades?”, questiona.  O pesquisador reconhece que a realidade começou a mudar com o sistema de cotas, mas reitera que a participação até bem pouco tempo era mínima.  Algo semelhante ocorre na política, prossegue ele. “A população negra representa mais da metade da sociedade brasileira, mas quantos estão no Congresso Nacional, na Assembleia, no Senado? É uma sub-representação”. E o crescimento expressivo da discriminação racial no país aumenta a relevância do filme “Danças Negras”, acredita o codiretor, o coreógrafo Firmino Pitanga. “Nesses tempos conturbados, com o racismo escancarado novamente, inclusive pelos poderes públicos, é de extrema importância manifestações de resistência como esse documentário”, conclui. Serviço: Sessão especial do documentário “Danças Negras” e conversa aberta com os diretores João Nascimento e Firmino Pitanga. Horário: 19h30 às 22h. Data: 03/02. Quanto: Gratuito. Local: CineSesc. Rua Augusta, 2075, em São Paulo. Entrada com acesso para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Bicicletário gratuito (necessário cadeado e corrente). Tel.: (11) 3332-3600. *Por Carlos Minuano é jornalista e escritor
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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