Em carta, Fabiana Cozza renuncia papel de Dona Ivone Lara no teatro

Cantora afirma que por ser parda foi criticada por ser "branca demais para o papel". "Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu", diz

(Foto: Divulgação)
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A cantora Fabiana Cozza renunciou ao papel de Dona Ivone Lara que faria no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro”. Segundo ela, a sambista, que morreu no dia 16 de abril aos 97 anos, "precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu". Desde que foi escolhida, ativistas do movimento negro vinham criticando o fato de Fabiana, como parda, ter aceitado o papel. "Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar 'branca' aos olhos de tantos irmãos", afirmou, em carta publicada em sua página no Facebook. Ela escreveu um longo texto onde pediu "que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós". E falou no direito de "outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também serem respeitados como negros". A carta causou polêmica, como mostram diversos comentários na publicação, alguns de apoio e outros criticando o teor do texto e a frase "alma não tem cor". "Fez muito bem em renunciar, pois é fato que Dona Ivone merece ser representada por uma negra retinta, como ela, tão orgulhosa de sua raça. Não vou entrar nos pormenores da sua fala, pois quando se diz que alma não tem cor, traz um reducionismo tão grande ao debate, que não vale a pena", respondeu Suelly Bonfim. Quando Fabiana foi anunciada para viver o papel, a produção do musical destacou que a família comemorou. "No Brasil, a artista que mais homenageou Dona Ivone Lara foi Fabiana Cozza. Quando o Jô chegou em casa para a reunião sobre o projeto, a família foi unânime, gostaríamos muito que quem vivesse Dona Ivone fosse Fabiana Cozza. Hoje, com o anúncio do nome, comemoramos em festa. Como a própria Dona Ivone dizia, Fabiana é gente lá de casa", afirmou Eliana, nora de Dona Ivone Lara, ao saber que a atriz viveria Dona Ivone Lara na fase madura. Com cinco álbuns gravados e dois DVDs lançados, Fabiana fez diversos shows ao lado de Dona Ivone Lara e já cantou com outros artistas, como Elza Soares, João Bosco, Leci Brandão, Emicida e Rappin Hood. Leia abaixo a carta, publicada aqui. Fabiana Cozza dos Santos, brasileira Nascimento: 16 de janeiro de 1976 Mãe: Maria Ines Cozza dos Santos, branca Pai: Oswaldo dos Santos, negro Cor (na certidão de nascimento): parda Aos irmãos: O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais recentemente no da academia, sempre com os meus mestres - que escuta é lugar de reconhecimento da existência do Outro, é o espelho de nós. Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente “politicamente correta”. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias. Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas. Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas. Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão pelos donos e colonizadores brancos. Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola. Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai, minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas... Ao lado de vocês, irmãos. Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele comemorando na praça a nossa liberdade. Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua passagem e precisa de paz. Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós. Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros. Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque acredito num mundo feito de gente e afeto. Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter, desumano. Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo, lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio. Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos covardes. Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara. Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não tem cor”. E a gente chega lá. Fabiana Cozza