"Está tudo muito perigoso", diz quadrinista que teve obra censurada em exposição

Gidalti Jr., autor da ilustração que retrata uma cena de violência policial e que foi censurada de uma exposição em Belém (PA), falou à Fórum sobre a censura e as consequências do atual momento de polarização política que abre espaço para que desinformados opinem sobre o que é ou não arte

Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal
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A grita de um grupo direitista culminou na censura de mais uma obra artística que estava em exposição. Nesta segunda-feira (16), a organização de uma exposição sobre histórias em quadrinhos do Parque Shopping Belém, no Pará, retirou um desenho do quadrinista Gidalti Moura Jr. da mostra. A ilustração censurada em questão é, na verdade, a reprodução da capa do livro “Castanha do Pará”, que recebeu o Prêmio Jabuti de melhor HQ de 2017. A obra mostra um jovem – o protagonista do livro – escapando da agressão de um policial, que o ameaça com um cassetete. De acordo com Gidalti, o shopping resolveu retirar a obra após as manifestações, pela internet, de um pequeno grupo de simpatizantes da Polícia Militar. O Parque Shopping Belém afirmou que "apenas cedeu o espaço em sistema de comodato para a montagem do evento". O artista denunciou o caso em sua página do Facebook e, na noite de terça-feira (17), concedeu uma entrevista exclusiva à Fórum em que falou sobre a censura e analisou o recente levante conservador que vem culminando em discursos extremistas e abrindo espaços para que pessoas "desinformadas" digam o que é ou o que não é arte. Confira. Fórum - Do que se tratava, exatamente, a exposição e como se deu sua participação? Gidlati Jr. - A exposição que ocorreu em um shopping de Belém contemplava um grupo de artistas que trabalha com histórias em quadrinhos. Era uma espécie de homenagem aos artistas da região que trabalham com esse gênero. E eu fui convidado por um curador que eu conheci numa noite de autógrafos do meu livro no Pará. Fórum - A ilustração censurada é a reprodução da capa do seu livro e retrata um jovem escapando de uma agressão policial. O livro trabalha essa temática, a da violência policial?  Gidalti Jr. - Não, o foco não é a violência policial. E isso é muito curioso porque o julgamento caiu no clássico clichê da frase "não julgue o livro pela capa". É óbvio que existe uma relação, o evento acontece, mas a história não é sobre isso. O menino da capa é o Castanha, um menino que passa a viver na rua, na região da Cidade Velha, onde é situado esse mercado. Então, por algum motivo, ele desaparece e enquanto as pessoas que procuram por ele, narra-se o que ele está fazendo no mercado, as coisas que ele vai aprontando. Um menino de rua, que tem suas malícias, suas travessuras, que consistem em furtar, em atormentar a vida dos feirantes, e em uma das cenas um policial segue ele, tenta prender e não consegue. Inclusive, a polícia faz parte de um movimento pra tentar encontrá-lo, por que ele está desaparecido. E a policia é retratada até de maneira humana, o que é um paradoxo. Não que eu esteja defendendo isso ou aquilo, mas para você ver a contradição. Fórum - E como começou esse movimento que culminou na censura da ilustração? Gidalti Jr. - O que aconteceu foi a vitória, a prevalência de vozes muito pequenas mas que são expressivas, digamos assim. Um grupo muito pequeno de pessoas associadas à militares e à Polícia Militar, não sei precisar exatamente. Mas um grupo que tem associações com a polícia, simpatizantes, se manifestaram de maneira muito ríspida, muito enfática contra a obra. E qualquer um que vê a figura não vai fazer esse tipo de associação. É bem unânime essa percepção de que a obra não tem esse caráter de denegrir a Polícia Militar. E mesmo que tivesse, eu estaria no meu direito, e o shopping também estaria no direito, e o curador também, de trazer essa discussão para o espaço público. Então, numa atitude em que, ao meu ver, o medo prevalece, resolveram tirar. Mas acho que o tiro foi no pé, pois as manifestações contrárias à ação foram esmagadoras. As pessoas ficaram revoltadas. Fórum - E você foi comunicado antes de a obra ser retirada da exposição? Gidalti Jr. - A minha relação é somente com a equipe de curadores. Me ligaram informando do impasse, mas no momento que a gente estabeleceu a comunicação para tentar pensar numa solução, a obra já tinha sido retirada. Não sei exatamente quem tem o poder sobre essa questão porque moro em São Paulo e o evento foi em Belém. Quando a questão chegou até mim a imagem não estava mais na exposição. E, ironicamente, tinha um quadrado preto no lugar. Não tenho muito o que discutir. O shopping já se posicionou. E aí eu me manifestei não contra o shopping ou contra a curadoria, mas contra qualquer tipo de atitude envolvida por grupos extremistas que querem dizer o que é arte, o que pode ou o que não pode. Fórum - Como artista, de que maneira você interpreta esse movimento recente que vem culminando em inúmeras censuras a obras de arte, exposições e apresentações artísticas no país? Gidalti Jr. - Eu jogo a culpa também para minha pessoa. Toda manifestação artística em que esteja envolvido ou que esteja se desenvolvendo a partir de uma iniciativa privada é frágil em certo sentido. Essa relação com instituições como shopping center, banco, todas que querem flertar com a arte para colher algum tipo de bônus na imagem, fazer uma associação em que eles arrecadem algum tipo de benefício para sua imagem, tende a ser um pouco frágil porque no momento em que se coloca em xeque os valores do mercado e os valores do artista, ou da mensagem, as instituições tendem a ser muito medrosas, talvez, conservadoras, porque o mercado, acima de tudo, é baseado no conservadorismo, não na ousadia. Mas sob um ponto de vista até mesmo do marketing, algumas empresas, ao tomar partido de vozes radicais, acabam tendo uma postura errônea, dentro da perspectiva conservadora mesmo. Eles erram, não estão preparados para lidar com isso. Então, acho que existe uma fragilidade no momento em que a arte se abraça com o mercado desta maneira. E eu tenho ciência disso, acho que esse evento foi mais uma amostra que essa relação é muito frágil. Mas isso não significa que o mercado precise romper com os artistas. Acho que se a instituição tivesse tomado partido pela liberdade, pelos valores democráticos, a imagem da instituição, sob um ponto de vista de marketing, teria saído muito mais vitoriosa. E a partir do momento que as instituições cedem a grupos violentos o impacto negativo é muito maior. As pessoas estão indignadas. Fórum - Para além das relações com o mercado, você acredita que as vozes radicais e conservadoras têm sido amplificadas e mais ouvidas? Digo isso pois a arte que retrata nudez, violência policial, sexo ou que ironiza religiões sempre existiu no Brasil mas há a sensação de que somente agora ela começou a ser censurada... Gidalti Jr. - Acho que isso acontece contece por diversos fatores. E aí eu poderia citar um deles, que é uma polarização política que a gente vive, entre direita e esquerda, bem e mal, sem fazer relação de consequência, simplesmente as pessoas entendem sua verdade como verdade, no sentido político. E existe um fator também no Brasil que é a falta de educação. A gente tem hoje adultos que votam, que pensam, que fazem leis, que julgam e, por incrível que pareça, são desinformados. A gente tem muita gente que não tem uma formação completa. Gente que decide os rumos da sociedade. Temos profissionais de primeira qualidade que não têm uma formação humana, mais ampla, são formações técnicas. As pessoas leem muito pouco, sabem muito do seu ofício, como médicos, engenheiros, advogados, motoristas, mas é um conhecimento técnico e específico, e não são qualificados pra convicência social. E um outro fator de extrema relevância são as novas tecnologias, onde todo mundo acha que sua fala deve ser ouvida e deve ser entendida como verdade. Muito por conta das redes sociais. A fala é retórica, ela não consiste em um diálogo. E a gente conhece esses mecanismos das redes sociais que cada vez mais vão impulsionando a gente a achar que o mundo é nossa bolha. Acabam surgindo aberrações ideológicas e de comportamento, isso de todos os lados. Está tudo muito perigoso. Notas enviada pelo Parque Shopping Belém
NOTA PARQUE SHOPPING BELÉM
Diante da repercussão gerada pela retirada da obra da Exposição de Quadrinhos, o Parque Shopping esclarece que apenas cedeu o espaço em sistema de comodato para a montagem do evento. O Parque Shopping reafirma sua missão de incentivar as artes e dar luz ao trabalho de curadores e artistas paraenses.
NOTA DA COORDENAÇÃO DA EXPOSIÇÃO DE QUADRINHOS
A coordenação da Exposição de Quadrinhos esclarece que a decisão de retirar o desenho de Gidalti Moura Jr, ilustração que integra a obra intitulada “Castanha do Pará”, foi tomada em comum acordo com a curadoria do evento. Outra obra do mesmo autor será colocada na mostra.
A mudança ocorreu diante de manifestações de frequentadores do shopping que se sentiram incomodados com a cena de violência, no espaço que é frequentado por crianças.
A coordenação ressalta, ainda, que a atividade não foi criada pelo Parque Shopping, o empreendimento, apenas cedeu o espaço, gratuitamente, em sistema de comodato.
Reportagem atualizada 19/4/2018, às 10h48