Estética da Quarentena: Cinema online feito de lives

Enquanto a própria casa vira uma prisão espelhada da rotina de cada um, a arte e cultura assimilam essa estética, de modo a retribuir com novas obras que dialoguem com este momento. Assim, surgem os filmes quarentenados, ou mesmo em formato de lives

Cinema online feito de lives durante a quarentena (Reprodução)
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Por Filippo Pitanga*

Enquanto alguns falam de relaxamento precoce do confinamento, muitos outros se mantém responsáveis em casa, solidariamente, para impedir que a pandemia se dissemine ainda mais aos que não têm o mesmo privilégio ou que cumprem serviços essenciais. E, enquanto a própria casa vira uma prisão espelhada da rotina de cada um, a arte e cultura assimilam essa estética, de modo a retribuir com novas obras que dialoguem com este momento. Assim, surgem os filmes quarentenados, ou mesmo em formato de lives: há de exemplo o pioneirismo brasileiro de “Me Cuidem-se” dirigido por Cavi Borges e Bebeto Abrantes, um filme-processo lançado em episódios quinzenais desde abril de 2020, bem como o projeto internacional “Feito em Casa” (“Homemade”), estreia mais recente na Netflix.

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Numa coprodução internacional concebida pelo renomado cineasta chileno Pablo Larraín em parceria com Lorenzo Mieli e Juande Dios Larraín, “Feito em Casa” (assista aqui) é um filme coletivo composto por 17 episódios independentes, cada um dirigido por personalidades do cinema em lugares do mundo bastante variados. Temos desde o cineasta chinês Johnny Ma (de “Old Stone” de 2016), quarentenado com sua família no México, à cineasta indiana Gurinder Chadha (de “Driblando o Destino” de 2002) com seus filhos em Londres.

Alguns dos destaques, porém, decerto ficam com o quão original se tornou a abordagem sobre o tema em comum: todos deveriam filmar remotamente e respeitando as regras de isolamento social. Obras como a do oscarizado diretor italiano Paolo Sorrentino (de “A Grande Beleza” de 2013) surpreende pela forma lúdica com que o cineasta brincou com dois arquétipos universais, a Rainha da Inglaterra e o Papa Francisco, cujo encontro inusitado foi possibilitado com dois bonecos. De forma igualmente surpreendente, o próprio organizador do projeto, Pablo Larraín (de “Neruda” e “Jackie”, ambos de 2016), brinca com o formato da videoconferência para juntar ex-amantes (Jaime Vaidell e Mercedes Morán) num mordaz acerto de contas com a memória.

Apesar de algumas decepções, como faltar mais interseccionalidade, tendo questões de raça e classe nomeadas apenas no primeiro curta-metragem, do francês descendente de Mali Ladj Li (de “Os Miseráveis” de 2019), e no de Rungano Nyoni (diretora da Zâmbia do cult “Eu não sou uma bruxa” de 2017), foram as mulheres em geral que mais se destacaram, especialmente abraçando a experimentação e o cinema de gênero. Seja com a metafísica associativa do presente de sua família e seu passado em imagens de arquivo numa primorosa plasticidade confessional de Rachel Morrison (primeira mulher indicada ao prêmio de direção de fotografia em 90 anos do Oscar por “Mudbound” de Dee Rees em 2018); Seja com uma poética ficção-científica pandêmica, no que talvez seja o melhor episódio do projeto, nas mãos da atriz Maggie Gyllenhaal, estreando como cineasta a dirigir seu marido Peter Sarsgaard.

Além delas, merece destaque a também atriz Kristen Stewart (multipremiada por “Acima das Nuvens” de Olivier Assayas em 2014) que protagonizou e dirigiu seu próprio episódio, num ensaio com economia de planos enquadrados em seu rosto para transitar entre a vigília e o torpor da insônia na quarentena... Igualmente, a libanesa Nadine Labaki (de “Cafarnaum” de 2018) e seu marido Khaled Mouzanar, que deram total liberdade à sua filha menor inserida no mundo da memética e dos filtros digitais à la Tik Tok... A iraniana Ana Lily Amirpour (de “Garota Sombria Caminha Pela Noite” de 2014), que anda de bike seguida de um drone com uma lente grande angular, numa contraposição dos dizeres grafitados nas ruas desertas de LA e a narração em off de Cate Blanchett... Ou mesmo a japonesa Naomi Kawase (da obra-prima “Tarachime” de 2006) que surpreende em tom semidocumental com uma câmera na mão, libertando-se do tripé de suas narrativas ficcionais, de modo a se comunicar com uma essência cósmica das coisas que encontramos em comum ao nos aproximarmos.       

Kristen Stewart (Reprodução)

Todos estes filmes falam de uma solidão interior que coincide com um sentimento de readequação aos espaços em nosso entorno, em muitas afinidades estéticas com anseios universais – tanto que são algumas das mesmas questões que já trazíamos no Brasil desde o lançamento do primeiro “Me Cuidem-se” em abril, que se encontra na quinta parte de um filme-processo, em constante mutação. Como exprimiria o filósofo Bruno Latour em sua teoria do ator-rede, as relações sociais vivem se reconfigurando o tempo inteiro, e todos os agentes envolvidos são dispositivos desta transformação constante, pois os próprios atores podem falar melhor sobre suas próprias relações do que o analista que o analisa...

O pioneirismo brasileiro de “Me Cuidem-se”, dirigido por Cavi Borges e Bebeto Abrantes

Portanto, com sua experiência em ocupar vários espaços descentralizados no território audiovisual, o cineasta e produtor Cavi Borges (de “Cidade de Deus: 10 Anos Depois” de 2013) se juntou ao grande documentarista Bebeto Abrantes (de “Caminho do Mar” de 2018), ambos também professores da Academia Internacional de Cinema (saiba mais em AIC), e navegaram nas redes online para encontrar novos rumos de aproximação digital. Unindo por volta de 15 personagens de várias regiões das cidades do Rio de Janeiro, São Gonçalo e Nova Iguaçu, eles descortinaram diferenças de classe, gênero e raça na manutenção do confinamento ante a pandemia mundial – com a mesma regra de não se ter interação social. Apesar de os episódios possuírem números e poderem ser encarados como entidades independentes uns dos outros, ao mesmo tempo eles todos são parte de um grande filme-processo, que se agregam e se repelem, se modificam ao transbordarem uns nos outros, seja no som, na montagem ou em flashbacks... Cada novo filme que dá continuidade aos personagens modifica a visão sobre os anteriores, podendo, inclusive, mudar o passado para se adaptar a novos rumos no futuro. Algo que será abordado no ainda inédito sexto episódio, onde os próprios diretores se tornarão personagens necessários para dar opacidade aos mecanismos de cinema, nas palavras do autor Ismail Xavier, e dialogar com o que foi feito até então, e superar a saturação do exaurimento dos confinados (e nosso, na vida real).

E essa parceria dos diretores não para por aí, pois a dupla dirigiu também o longa-live “Inspira: A Esperança Equilibrista” (assista aqui), um projeto que parte da inspiração na música “O Bêbado e a Equilibrista” do saudoso Aldir Blanc com João Bosco, reunindo inúmeros artistas como Clarice Niskier, Flávio Bauraqui, Dan Stulbach etc... Além de ter contado com parcerias inéditas como de Leila Pinheiro e Zeca Baleiro, ou mesmo de Ivan Lins com a Orquestra Maré do Amanhã. Um show-performance que funcionou como um bom exercício a tentar superar o dilema da sincronização das lives com performances pré-gravadas além de entradas ao vivo. Várias vertentes de uma associação poderosa da arte com o agora, que está alimentando o nosso senso crítico ante o desastroso momento político de um país que não soube lidar com a pandemia global, mas cuja cultura está na vanguarda da cura espiritual que este mundo tanto precisa.

*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema