Fabiana Cozza canta Dona Ivone Lara, homenagem de uma rainha para outra

No álbum "Canto da Noite na Boca do Vento", Fabiana Cozza se atreveu com, além de ousadia e talento, uma criatividade sem fim, onde propôs releituras ao mesmo tempo inusitadas e reverentes às obras

(Foto: Divulgação)
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O grande lançamento do ano até aqui por essas plagas é, sem dúvida alguma, o álbum "Canto da Noite na Boca do Vento", onde a cantora Fabiana Cozza canta canções de Dona Ivone Lara. Logo ela, que acabou desistindo de interpretar a compositora e intérprete no musical “Um Sorriso Negro”, após ser acusada de não ser preta o suficiente. [caption id="attachment_173960" align="alignleft" width="300"] Foto: Divulgação[/caption] Desde que foi escolhida, ativistas do movimento negro vinham criticando o fato de Fabiana, como parda, ter aceitado o papel. “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos”, afirmou, em carta publicada em sua página no Facebook. O fato é que se não era “suficiente” para o papel, Fabiana sobrou no álbum em todos os sentidos. Dona Ivone Lara já foi gravada e regravada o bastante, além de magistralmente por ela mesma, por outros grandes nomes, para virar um grande risco qualquer atrevimento a quem se atira sobre sua obra, sobretudo em um álbum inteiro. Fabiana Cozza se atreveu com, além de ousadia e talento, uma criatividade sem fim, onde propôs releituras ao mesmo tempo inusitadas e reverentes às obras. Quase nada soa como nos acostumamos a ouvir nos sambas de Dona Ivone. Ao mesmo tempo, estão todos ali, intactos e lindos, de cara nova. Alguns poucos instrumentos de percussão e a predominância do violão de Alessandro Penezzi, deixam os sambas quase que por conta da cantora, que reina absoluta. Sua voz está mais precisa do que nunca. Algumas poucas canções conhecidas e diversas pérolas redescobertas cobrem o álbum de beleza e novidades. A própria “Alguém me Avisou”, uma das mais famosas, ganhou uma bela desconstrução onde, ao lado de Maria Bethânia, numa delicadeza sem fim e grande requinte instrumental, o samba de roda se espalha de maneira sutil e íntima entre as lindas vozes. O desfiar de belezas não para. Outro dueto, desta vez com o cantor Péricles, faz que quase cai no samba e permanece assim mesmo, pequenino e imenso, quase tímido na composição feita em parceria com Arlindo Cruz. Outra linda e elegante participação ficou por conta do saxofone de Nailor Proveta, em “A Dama Dourada”, de Dona Ivone e Hermínio Bello de Carvalho. O álbum segue de maneira tal que o ouvinte incauto é capaz de sentir, a princípio, uma certa frustração por não ouvir o sambão tradicional a que sempre foi ligada a compositora. Qual nada. Assim que se deixa levar pela imensa beleza e reverência com que as composições foram tratadas, tudo vira encanto. Mas tudo bem. Uma quase recompensa chega ao final, com o surdo, tamborim e cavaco na introdução do clássico “Os Cinco Bailes Da História Do Rio”, parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau. O trio segue só, até o final, ao lado da divina interpretação de Fabiana Cozza. Algo de perder o fôlego. A cantora se despede em alto estilo com “Bodas de Ouro”, parceria com Paulo César Pinheiro: “O samba me deu muito mais do que eu quis/O samba me fez bastante feliz/Até Bodas de Ouro com o samba eu já fiz”. "Canto da Noite na Boca do Vento" é homenagem de uma rainha para outra.