Ilíada tupiniquim

Talvez daqui a uns anos a Globo faça uma bela minissérie contando do heroísmo dos democratas nestes anos de chumbo, laranjas, arminhas, xixi e dedo no rabo

Foto: Ricardo Stuckert
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Por Manoel Herzog* Osvaldão, Antônio Conselheiro, Lamarca, Marighella, Besouro, Zumbi. Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus. Ghandi, Mandela. Lula. O sangue, a dor de todos os que lutaram pela libertação do povo. Osvaldão foi morto em combate no Araguaia. Pendurado num helicóptero, seu corpo ficou dias sobrevoando aldeias e comunidades, os militares escarnecendo da população pobre com o vilipêndio do herói. Foi decapitado por um sargento do exército, e seu torso abandonado não mais se encontrou, à moda dos rituais medievais de esquecimento perpétuo; Conselheiro foi decapitado, Lampião também; Lamarca e Marighella caçados e assassinados, Besouro queimado vivo dentro de um tronco, Lorca fuzilado, Ghandi emboscado, Jesus crucificado. Mandela preso. Dessas histórias tristes e heroicas, nessa História de infâmias da humanidade e em especial neste país saqueado desde sua fundação, chama atenção a analogia com a Ilíada, de Homero, epopeia invariavelmente classificada como obra que fala da ira, a ira de Aquiles, herói épico que teve morto pelo general inimigo Heitor o seu companheiro Pátroclo. Aquiles, abalado com a morte do amado, não sossegou enquanto não invadiu o exército inimigo e matou Heitor. Não contente em matar, vilipendiou o cadáver, arrastando-o atado a cavalos em volta dos inimigos rendidos. O rei Príamo, pai do general Heitor, sofreu por muitos dias a humilhação, e desejava tão somente poder dar funeral digno ao cadáver do filho. Conseguiu, depois de muita súplica, uma audiência com Aquiles. E fecha-se a Ilíada, essa obra grandiosa que, penso, não é uma ode a ira, mas à sabedoria e ao perdão, porque Aquiles, comovido com as razões de um pai ferido, num ato de grandeza devolve o corpo de Heitor, permitindo que Príamo lhe dê as devidas honras fúnebres. Termina assim o longo poema. A dignidade no combate, a lisura, são imprescindíveis, sob pena de se invadir os limites da crueldade, da imundície, da covardia, da mentira, tudo isso. Faltou à ditadura militar, imposta por interesses comerciais de grandes corporações e utilizando de gente vassala para sua implantação, justamente isso, dignidade. Como falta a estes ditadores do momento, mezzo militares/mezzo democratas, eis que eleitos pela idiotice de uma parcela vocacionada à escravidão e à colônia. É o que denunciam estes tristes episódios, pois os ciclos da História se repetem, haja vista Moisés descer do Sinai e pegar o povo adorando o bezerro de ouro. Dá vontade de pedir que os céus desabem sobre um povo desses. Há que se denunciar a desumanidade que tomou conta do Brasil nestes tempos insanos em que a maldade, a boçalidade, a escrotice, tomaram conta de vez. A Lula, que querem matar aos poucos, e vêm conseguindo, sequer se permitiu sepultar dignamente os seus. Ao funeral do irmão lhe negaram a saída, mataram sua mulher de desgosto, pra ver seu neto, uma criança inocente, só lhe permitiram desde que calado, e escoltado, um homem combalido de setenta e tantos anos que cospe, que urina na cara deste bando de canalhas que se encastelou no poder. A História, ah, a História. Triste é saber que ela se escreve em rascunhos que só serão passados a limpo num tempo em que não mais estaremos aqui. Talvez daqui a uns anos a Globo faça uma bela minissérie contando do heroísmo dos democratas nestes anos de chumbo, laranjas, arminhas, xixi e dedo no rabo. *Manoel Herzog, escritor brasileiro, nasceu em santos em 1964. Formado em Direito, depois do golpe, o único fórum onde tem prazer de entrar é nesta revista