Laíla, Mug e o meio milhão: o samba atravessado de Bolsonaro e a utopia da volta ao mundo

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia lamenta a morte de mais dois sambistas e o meio milhão de vidas brasileiras perdidas para a pandemia, relembrando o desfile da Vila Isabel de 1986

Foto: Laíla e Mestre Mug (Redes sociais)
Escrito en CULTURA el

Por Estevan Mazzuia *

É inacreditável. É desanimador. Confesso que houve um tempo em que eu, desesperado, acreditei que alguns números morbidamente exagerados e, talvez, pilhas de cadáveres pelas ruas, como ocorreu em outros países, pudessem sensibilizar a população que esgotou os estoques de papel higiênico nos supermercados em março e abril de 2020, quando as mortes ainda se contavam em dezenas. Acreditei que uma desgraça imediata pudesse nos privar de uma tragédia maior, a conta-gotas, devido a uma espécie de efeito pedagógico, que parecia necessário ante a crescente indiferença com os rumos do genocídio.

Hoje sabemos que duas mil mortes por dia não incomodam boa parte dos brasileiros. Como três mil ou quatro mil não incomodaram. Ao andar pelas ruas (o que faço muito raramente) e ver que o caos está normalizado, temo imaginar que as pessoas pudessem tranquilamente sentar-se à mesa de um bar, sob a luz do luar, borrifando perfume entre si, para amenizar o fétido odor da montanha de cadáveres ao lado, aguardando remoção.

Chegamos a meio milhão de mortos. Em números oficiais. Não apenas não testamos a população, como deixamos que diversos testes perdessem sua eficácia, armazenados nos depósitos da “burrocracia” brasileira e da inépcia do desgoverno federal. Jamais teremos certeza de quantas pessoas realmente sucumbiram à “gripezinha” de JB, o doutor. Assim como jamais teremos ideia de quantas pessoas tiveram sua vida ceifada por um inepto que mamou nas tetas do Estado por 30 anos e que se orgulha de não ter aprendido nada de economia ou políticas públicas, mas que se julga capaz de receitar medicamentos. Quantos brasileiros terão ingerido substâncias comprovadamente ineficazes, em doses mortais?

A esperança voltou às ruas no último sábado, com manifestações ainda maiores que as de maio, por todo o Brasil. Mas o cenário que decidirá o destino do Brasil começará a se delinear daqui a um ano. E a economia deve se recuperar, apesar de JB, muito menos do que se um cone ocupasse o Palácio do Planalto, mas deve melhorar, por inércia. E sabemos que, infelizmente, grande parte da população vive no limite, e quaisquer R$ 500 em setembro de 2022 podem induzir o voto no mês seguinte.

Na semana que se passou, mais uma lenda de nosso carnaval foi levada pelo novo coronavírus: Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, ou Laíla, como o mundo do samba consagrou. Nascido na Tijuca, integrou a bateria da escola mirim Independente da Ladeira. Nos anos 60, arriscou-se como compositor no Salgueiro. Em 1967 assumiu a diretoria-geral de carnaval da vermelho e branco e, em 1975, a diretoria de harmonia. Laíla passou, posteriormente, por Unidos da Tijuca, Arco-Íris (Belém/PA), Vila Isabel, Unidos do Peruche, Grande-Rio, Águia de Ouro e União da Ilha. Mas foi na Beija-flor de Nilópolis, onde esteve de 1975 a 1980, 1987 a 1992 e 1994 a 2018, que permaneceu por mais tempo e conquistou mais títulos. Após três dias de internação, o mestre sucumbiu, nos deixando na última sexta-feira, semanas após completar 78 anos.

O mundo do samba nem teve tempo de assimilar a notícia. Em questão de horas, perdíamos Amadeu Amaral, o Mestre Mug, presidente de honra da bateria da Unidos de Vila Isabel, a “Swingueira de Noel”, que dirigiu por mais de 30 anos, de 1972 a 1974, e de 1979 a 2009. Estava internado desde 12 de março, para tratar de uma hérnia de disco, mas acabou contraindo infecções e não resistiu. Tinha 70 anos.

Mug e Laíla estiveram em lados opostos na maioria dos carnavais que participaram. Quis o destino, porém, que estivessem defendendo o pavilhão de Noel em 1986.

Naquele ano, com o enredo “De alegria cantei, de alegria pulei, de três em três, pelo mundo rodei”, desenvolvido por Max Lopes, a Unidos de Vila Isabel era apontada como uma das favoritas ao título. Foi a quinta escola a desfilar, na noite de 9 de fevereiro, a primeira de duas do grupo principal.

O tema era um protesto contra o fim das marchinhas de carnaval e das fantasias tradicionais. Max propôs uma viagem de volta ao mundo a partir da influência de outros povos nas músicas que embalaram os tríduos momescos de outrora.

Casais de mestres-salas e porta-bandeiras integravam a comissão de frente e a escultura de um sorridente Rei Momo ornamentava o carro abre-alas. Sobre seu peito, uma faixa com as bandeiras dos diversos países que seriam lembrados no desfile.

“História do Brasil”, de Lamartine Brabo, era a referência aos portugueses. Uma caravela, ladeada por galos de Barcelos e cachopas, trazia o cantor Roberto Leal, e um figurante vestido de torcedor vascaíno, entre outros, relembrando os versos da famosa marchinha: “Quem foi que inventou o Brasil? / Foi seu Cabral! / Foi seu Cabral! / No dia vinte e um de abril / Dois meses depois do carnaval”. A despeito do erro histórico (o Brasil teria sido “inventado” no dia 22 de abril), a música foi grande sucesso nos anos 30.

Holandeses, chineses, mexicanos, romanos, havaianos, japoneses, franceses, espanhóis, árabes e africanos também estavam representados nas alas e alegorias pelas quais se distribuíram os 3.500 componentes. Todos eles, de alguma forma, lembrados em músicas que embalaram os antigos carnavais. O setor final homenageava o próprio povo brasileiro, presente na maioria das canções.

O samba, de autoria de Davi Corrêa e Jorge Macedo, era puxado pelo próprio Davi, auxiliado por Gera e Jorge Tropical, e trazia no último verso uma alusão nada sutil a uma expressão de baixo calão, dita quando a gente quer mais é extravasar:

“Será, ô será / Que o samba ginga na voz Brasil / Mas deixa isto pra lá / E vá na pura do barril”

Tudo ia muito bem, com belas alegorias e fantasias, até que os problemas começaram: o carro que aludia aos franceses teve problemas para entrar na avenida e algumas alas chegaram atrasadas à concentração. A escola, que avançava rapidamente pela avenida, viu a formação de um enorme vazio na entrada da Sapucaí. Componentes corriam para preencher o espaço, passando por trás da alegoria parada. As baianas da escola, muitas delas senhora de idade, estavam entre esses componentes, e muitas chegaram a cair durante a desabalada carreira, num sacrifício redobrado não apenas pela idade, mas pelo peso da indumentária.

Correria absolutamente desnecessária. A escola tinha 90 minutos para completar seu desfile mas, aos 55, Laíla teve que segurar os últimos setores, para que o tempo mínimo de 75 minutos fosse cumprido, evitando a perda de pontos.

Com a mencionada correria, os buracos formados, e a espera de 20 minutos nos últimos setores da avenida, evolução, harmonia e conjunto foram severamente comprometidos. O enredo também, uma vez que alas e alegorias se apresentaram em desacordo com a posição original no desfile.

Resultado: nem a excelente bateria de Mug evitou o 11º lugar entre as 15 escolas, com 186 pontos.

Se o carnaval em que Laíla e Mug estiveram lado a lado não foi inesquecível por boas razões, certamente não comprometeu a gloriosa contribuição de ambos à nossa maior festa popular.

Obrigado Mug e Laíla!

A viagem de volta ao mundo imaginada por Max Lopes, contudo, está cada vez mais distante de nós, brasileiros. A seguirmos o ritmo atual, no fim de agosto poderemos ter o maior número absoluto de mortos, superando os Estados Unidos. Ao final de setembro, poderemos estar em segundo lugar em números relativos, atrás apenas do Peru, com estatísticas pra lá de questionáveis. E o mundo todo, com razão, segue de portas fechadas para nós, brasileiros. O país que, há 10 anos, era sinônimo de pujança, hoje é um pária mundial, celeiro de cepas mortais de uma pandemia praticamente controlada em todos os países que providenciaram o distanciamento social, enquanto ainda não haviam vacinado sua população.

Mesmo assim, JB, o inabalável, aquele que afirmou que não morreriam mais de 800 pessoas e, em abril do ano passado, que a “coestão” do vírus já estava indo embora, segue afirmando para sua torcida que “não errou uma”, que a cloroquina não tem comprovação científica da ineficácia, que as vacinas não têm comprovação científica da eficácia, que o uso de máscaras amplifica as mortes, que o STF o impediu de agir, que o direito à livre locomoção deve se sobrepor ao direito à vida e à saúde... A gente fica sem saber se é doença ou maldade. E eu nem sei o que é pior: ter um presidente mentalmente adoecido, ou maquiavélico.

Mas ele é o de menos. Cedo ou tarde, passará.

Resta, a nós, sabermos como lidar, pelo resto de nossas vidas, com essa gente que, a esta altura do campeonato, ainda o aplaude. Gente que não tem o menor pudor em entrar para a História ajudando a sustentar no poder, por quase três anos, um presidente que segue destruindo o pouco que foi construído na triste história deste país. Sem erguer absolutamente nada no lugar.

Não se sabe quando esse pesadelo vai acabar. Sonhamos com a possibilidade de que seja em 31 de dezembro de 2022. Antes, com muita sorte. Mas pode durar mais.

A única certeza é que a geração que viveu os melhores momentos deste pais, no início do século XXI, jamais voltará a vê-lo em semelhante situação. Sobre os escombros desses dois anos e meio, que poderão se tornar três, quatro, ou oito, não será em outros dois, três ou oito que se reconstruirá o país. Arrisco dizer que nem em quarenta.

E se um dia isso ocorrer, a lembrança de nossa resistência será, quando muito, uma singela fotografia a adornar nossas lápides.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.