Maior que o mundo, de Reinaldo Moraes

Manoel Herzog comenta “Maior que o mundo”, novo romance de Reinaldo Moraes, o autor de “Pornopopeia”

Reinaldo Moraes. Foto: Maria do Carmo/Divulgação
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Por Manoel Herzog* Me peguei outro dia numa discussão sobre as legitimidades da república, a nossa em especial, onde dois dos poderes têm seus representantes eleitos pelo povo e um por concurso público/esqueminha. A pessoa com quem discutia advogava a necessidade de o Judiciário ter, ele também, seus membros eleitos pelo voto popular. Eu acho que é necessário um preparo mínimo, que talvez só o concurso possa validar (sem os conceitos vagos e complacentes de “notável saber jurídico” e “ilibada reputação”), mas concordei, em grande parte. Lembramos de como os concursos avaliam determinadas capacidades decorativas e subjetivas, e de como as indicações para o quinto constitucional e o STF, por exemplo, são eivadas de tráfico de influências, esquemas, compra de interesses, ou de como os lobbies, nos EUA, país em que se elegem membros do Judiciário, são o fator preponderante de ingresso na carreira. De tudo deduzimos, ao final, que a democracia está na roça. [caption id="attachment_173116" align="alignleft" width="289"] Maior que o Mundo - Foto: Divulgação[/caption] Este assunto, por mais pareça estranho numa coluna que se pretende literária, foi a porta de entrada que vi pra falar do meu autor preferido na cena contemporânea, Reinaldo Moraes. Pornopopeia, de 2009, é, na minha concepção e na de inúmeros palpiteiros feito eu, o maior romance do século XXI até agora. Uma obra prima que parece ter custado caríssimo ao autor, amaldiçoado com a obrigação de parir outro romance genial, mais ou menos a sina de Juan Rulfo depois de fazer Pedro Páramo, lembrando que o mexicano morreu frustrado. Se no voto popular este romance foi consagrado como um sucesso (calma, sucesso literário no Brasil não é exatamente um passaporte à fortuna) é certo que passou batido por todos os prêmios importantes da época, ou seja, a academia e os ungidos jurados simplesmente desconheceram esta obra magna. E a graninha desses concursos ajuda substancialmente o depauperado escritor nacional. Este assunto me volta à tona nestes tempos quem que vemos as patotas se fechando em torno de eleger os círculos da "atual poesia contemporânea branca e urbana", ou do "suprassumo da narrativa romanesca heteronormativa com nuanças gay", ou do "clube do conto bukowskiano-maldito-nutella" e confrarias afins, e me pega lendo o último romance do Reinaldo. Maior que o Mundo (Alfaguara, 2018) é o primeiro tomo de uma trilogia narrada por um alterego do autor, em primeira pessoa. Nada muito diverso da voz narrativa que já experimentou nas obras anteriores (Tanto Faz, Pornopopeia), ou seja, um escritor de meia idade macho urbano branco universitário usuário esporádico de drogas meio de esquerda e cabeção. Pra quem torce o nariz perante tão manjada personagem, protagonista de imensa parte da cena literária a soldo do mercado editorial, acrescento um ingrediente: a genialidade. Reinaldo pode se repetir e ele próprio faz questão de dizer que não busca outra voz, é essa aí mesmo. A verve e a técnica mezzo machadiana, que faz da ironia e dos jogos linguísticos o tempero de sua literatura, salvam o que quer que ele pretenda escrever. Kabeto, seu narrador, é um escritor na maturidade cronológica, longe, muito longe, da emocional, que está em crise criativa, ou seja, não consegue produzir um novo romance genial feito o Strumbicomboli (alterego do Pornopopeia) e tenta forçar a inspiração a descer sobre seu cavalo. Em cenas hilárias, daquele humor reinaldiano que nos conduz à reflexão e à inexorável tristeza, o herói sai de gravador em punho documentando toda a cena de São Paulo, ingressa numa academia de ginástica e numa reunião de namastês, é agredido por um professor anabolizado, vai a um bar e encontra os amigos, onde faz da mesa palco de discussões intelectuais vazias mas saborosíssimas. Uma curiosidade, esta personagem, tal e qual o Zeca, de Pornopopeia, é nascida em 1964. Hoje está com 54 anos e enfrenta o processo de invisibilidade. Garanhão histórico, se vale da reputação literária pra seguir comendo as menininhas, mas lamenta o declínio como quem vê uma era de ouro ir embora (trecho abaixo). Eu nasci em 1964 e, por uma empatia com o texto do amigo, me vejo novamente projetado em suas personagens, como se ouvindo os ensinamentos de um irmão mais velho (só tive dois contatos pessoais com o autor, é tudo um processo literário mesmo). Reinaldo é de 1951. Também me pego escrevendo sobre fatos de duas décadas atrás, o que me reforça a concepção de que a literatura é mesmo um processo de digestão. Daquilo que a gente passa a vida engolindo. Recomendo fortemente. Trecho: Audra é uma puta atriz. Instintiva. Daquelas que não nasceu, estreou. Miná... vem cá: cê acha que alguma atriz instintiva de vinte anos... De vinte e sete. ...de vinte e sete anos, que não nasceu, estreou, e tal, cê acha que ela vai dar trela prum tiozão cinco-ponto-três? Descambando pro ponto-quatro? Conheço o tipo. Ela vem, diz que te leu, ela cita alguma coisa que você escreveu, tira uma selfie com você, mas, daí, quando você acha que ganhou a mina, bate um sino e ela se despede cum sorriso de netinha feliz e te deixa pendurado nos beiços, se sentindo mais velho que o código de Hamurabi. Serviço: Maior que o mundo, romance, Reinaldo Moraes, Editora Alfaguara, preço R$.38,00 *Manoel Herzog, escritor brasileiro, nasceu em santos em 1964. Formado em Direito, depois do golpe, o único fórum onde tem prazer de entrar é nesta revista