Novo filme da dupla mais quente do Recôncavo Baiano estará online em Tiradentes 2021

Confira fotos e dados exclusivos de “Voltei”, novo longa-metragem dos cineastas Glenda Nicácio e Ary Rosa, símbolos de resistência da mais relevante inovação artística de representatividade atual

Foto: Divulgação
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Foi em 2017 que o universo cinematográfico brasileiro mudou radicalmente, no 50° Festival de Brasília. A memória é quase cristalina. Este que vos escreve estava lá presente... Impossível esquecer. Não é à toa que o filme em questão vinha do Recôncavo Baiano, de Cachoeira, e o próprio lugar de origem era a metáfora perfeita para o que vimos acontecer ali. A catarse coletiva de um cinema de representatividade negra e LGBTQIA+.

Era como se fossem visíveis as inúmeras demandas reprimidas desaguando e confluindo para o mesmo lugar, como água de chuva no mar, como fluxo constante, como cachoeira... Parafraseando a famosa frase do saudoso mestre cineasta mineiro Humberto Mauro: “Cinema é Cachoeira”. Em 2017, uma cachoeira baiana, sem sombra de dúvida!

O nome do filme era “Café com Canela”, da dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa, um arrasa-quarteirão de afetos e inventividade, cuja expressão cultural tocou a todos os presentes numa comoção visível. A cachoeira estava presente também nos olhos marejados da plateia e de todos os profissionais do meio ali para fazer a cobertura do lançamento mundial do filme (veja aqui e aqui).

Lembrar destas águas correntes de emoção agora em 2021 é quase como curar com arte um pouco o que acabamos de passar, bem no epicentro da maior pandemia histórica a assolar o mundo depois de mais de um século, mesmo ainda não tendo saído completamente da tempestade. Isso nos faz lembrar que o planeta já viu muitas tempestades... E é importante sermos lembrados de que toda água escoa e que jamais entramos no mesmo rio duas vezes. Arte brasileira tão necessária e que não anda recebendo o devido tratamento merecido das políticas públicas.

Aquelas lágrimas de emoção não foram únicas na carreira da dupla de cineastas, pois eles aportam com a expectativa popular de mais uma comoção histórica agora por seu quarto longa-metragem inédito, “Voltei”, anunciado nesta quinta-feira (7) como parte da competição da Mostra Olhos Livres no Festival de Cinema de Tiradentes 2021. Com este, a totalidade de seus quatro filmes figuraram nas seleções da Mostra Tiradentes nos últimos anos, completando um circuito de reconhecimento continuado imprescindível não apenas para o fortalecimento da descentralização regional do cinema, concentrado por tempo demais apenas na região Sudeste (mais notadamente o eixo Rio/São Paulo).

Revelado com exclusividade para a Fórum, a trama do novo filme aproveita a estética do confinamento perante o estado de quarentena que transborda agora em 2021, ante novas ondas de contaminação e mutação da Covid-19, bem como da linguagem fabulatória como única válvula de escape para manter a sanidade mental num mundo que está mais insano do que nunca. Para não fazer um paralelo direto e nem incorrer na relativização da dor contemporânea, que perpassa o indizível, eles situaram a novíssima narrativa num Brasil de 2030:

“As irmãs Alayr e Sabrina estão ouvindo no radinho de pilha o julgamento que pode mudar os rumos de um país “sem energia”. Elas são surpreendidas por Fátima, a irmã que volta dos mortos para confraternizar nessa noite histórica.” – Algo que talvez possamos sentir uma influência Almodovariana do cult “Volver”? Só que no lugar do retorno da mãe falecida, interpretada por Carmen Maura, será que teremos mais um encontro de ancestralidade das mulheres pretas que já vinham recebendo protagonismo total das produções de Glenda e Ary?

Como alguns dos maiores nomes da sétima arte já fizeram, este é o ponto da carreira em que a vertigem mais onírica tem chance de se tornar ao mesmo tempo mais crítica e confessional com a realidade, podendo aproveitar a fidelidade de sua equipe reiterada por todos os seus filmes, como verdadeiras camadas do extracampo evocadas para o texto ficcional. A vivência continuada na pele e aura de suas atrizes-assinatura, vide os exemplos das irmãs na vida real Arlete Dias e Wall Diaz, acrescenta muitas reencarnações para o roteiro que só o tempo poderia maturar.

A cada produção eles ampliam o universo expandido vivido pelas mesmas artistas, numa grande metalinguagem entre os filmes, como visto no exemplar anterior, “Até o Fim”, que além das duas também contava com as excelentes adições de Maíra Azevedo (a Tia Má do programa Encontro com Fátima Bernardes) e Jenny Muller – filme ainda inédito no circuito comercial e que coleciona vários prêmios nos festivais de 2020 (confira debate aqui, mediado por Carissa Vieira e pelo curador Clementino Junior).

Esta viagem ao futuro de 2030 com certeza também é uma eterno retorno ao passado de muitas formas. Todas as nossas potências ainda sangrando em hemorragias expostas no presente, que só poderiam ser tocadas com a delicadeza do cinema fantástico e distópico. Marca dos grandes, como a viagem ao passado de “Morangos Silvestres”, de Ingmar Bergman (1.957), que escalou como protagonista um de seus cineastas/atores favoritos, Victor Sjöström, diretor de “A Carruagem Fantasma” (1.921) – onde o mestre sueco faz metalinguagem entre os dois filmes, parafraseando o segundo no primeiro quando Sjöström vê os fantasmas de seu passado ainda jovens, interagindo com o futuro na velhice.

Ou mesmo a paradigmática obra brasileira de Adélia Sampaio, “Amor Maldito” (1.984), primeiro longa de ficção a ser lançado no circuito comercial com uma cineasta negra na direção. Neste já se utilizava da fabulação como única forma de purgar o passado e mudar o futuro, através dos delírios da protagonista (Monique Lafond) que era injustamente acusada do homicídio da ex-companheira (Wilma Dias), que na verdade havia se suicidado. A acusação se baseava unicamente no fato de se tratar de um casal lésbico, por puro preconceito da época, pois foi inspirado em fatos reais de um famoso julgamento criminal na década de 80. E vale lembrar que “Café com Canela” foi o segundo longa de ficção dirigido por uma diretora negra a estrear no circuito, num hiato de 34 anos entre 1.984 e 2018, quando foi lançado comercialmente, por pura falta de acessibilidade para os trabalhos realizados neste interregno.

Este é o tamanho da inovação de cinemas contemporâneos como de Glenda Nicácio e Ary Rosa, ao mesmo tempo em que se utilizando da realidade social como denúncia construtiva de novas realidades, também conjugando da linguagem do cinema de gênero para redesenhar com liberdade total a emancipação do nosso cinema revolucionário brasileiro pro mundo. E que agora poderá ser desfrutado online em seu mais recente exemplar inédito, “Voltei”, completamente online na competição da Mostra Olhos Livres, nome que a Mostra recebeu da expressão cunhada pelo saudoso mestre Carlos Reichenbach, a qual norteia uma escolha curatorial de filmes de criatividade experimental que precisam ser vistos com total liberdade no olhar. Ressaltando que provavelmente o novo filme não poderia figurar na outra Mostra de Tiradentes, a Aurora, porque nesta precisa se configurar como até o terceiro longa-metragem inicial na carreira dos responsáveis, não podendo concorrer se já for do quarto em diante (como no presente caso de Glenda e Ary).

Na sua 24ª edição, a Mostra de Cinema de Tiradentes será realizada pela primeira vez no ambiente online, por conta da pandemia de Covid-19. Assim, a extensa programação de filmes e debates, já amplamente conhecida e celebrada pelos amantes do cinema brasileiro, do evento que abre o calendário audiovisual do país, estará disponível entre os dias 22 e 30 de janeiro no site www.mostratiradentes.com.br .

Confira aqui também outros destaques da Mostra Olhos Livres, como o novo exemplar da dupla de cineastas indígenas Isael Maxakali e Sueli Maxakali, que já haviam trazido em 2020 um dos melhores filmes do ano também na Mostra Tiradentes, “Yãmiyhex – As Mulheres Espírito”, e agora chegam com o novo trabalho assinado a 8 mãos, somados a Carolina Canguçu e Roberto Romero: “N?h? yãg m? yõg hãm: Essa Terra é Nossa!” (MG). Bem como podemos citar “Irmã” (RS), de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes (leia a crítica aqui de sua estréia no Festival de Berlim 2020); “Amador” (GO/MG), de Cris Ventura; “Subterrânea” (RJ), de Pedro Urano; “Rodson ou (Onde o Sol não Tem Dó)” (CE), de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra.

E, na competição da Mostra Aurora (confira grade de horários e dias aqui), ainda mais cinema baiano como com “Rosa Tirana” de Rogério Sagui com o consagrado ator José Dumont e trilha sonora inédita de Elba Ramalho, bem como “Açucena” (BA), de Isaac Donato e a coprodução “Eu, Empresa” (BA/MG), de Leon Sampaio e Marcus Curvelo. De outras diversas regiões, “Oráculo” (SC), de Melissa Dullius e Gustavo Jahn; “Kevin” (MG), de Joana Oliveira; “A Mesma Parte de um Homem” (PR), de Ana Johann; “O Cerco” (RJ), de Aurélio Aragão, Gustavo Bragança e Rafael Spíndola.

Ficha Técnica: “VOLTEI”

Ficção, Cor, DCP, 74min, BA, 2020

Direção: Ary Rosa e Glenda Nicácio

Roteiro: Ary Rosa

Produção Executiva: Ary Rosa, Camila Gregório, Reifra

Assistente de Produção: Iago Cordeiro Ribeiro

Direção de Produção: Glenda Nicácio, Gabriella Fiais

Montagem: Poliana Costa, Thacle de Souza

Fotografia: Augusto Bortolini, Poliana Costa, Thacle de Souza

Direção de Arte e Cenografia: Glenda Nicácio

Figurino: Reifra

Som Direto e Edição de Som: Cássio Duarte, Leandro Conceição

Mixagem: Napoleão Cunha

Trilha Sonora: Moreira

Empresa Produtora: Rosza Filmes

Elenco: Arlete Dias, Mary Dias, Wall Diaz