O poder e a imprensa: da reunião de JK ao discurso de John Kennedy, por Milena Buarque

Kennedy, então candidato à presidência dos EUA, afirma em um discurso que em duas cidades do Nordeste “nenhuma criança sobreviveu mais de um ano de idade. A frase seria o fio condutor para o livro “Pernambuco em chamas”, do jornalista Vandeck Santiago

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Por Milena Buarque* Um discurso feito em 1960 por John F. Kennedy, então candidato à presidência dos Estados Unidos, é a ponta de um exemplo magistral da retroalimentação que há entre a política e a imprensa – assunto para teses, mas competentemente abordado em séries, como nas primeiras temporadas de House of Cards, da Netflix. O distanciamento histórico pode tornar duvidosa a inclusão do sertão do Nordeste brasileiro como tópico da política externa de um ainda candidato à Casa Branca. Naquele início de década, Kennedy diz, após falar de educação e de Cuba – tempos de Guerra Fria –, que em duas cidades do Nordeste “nenhuma criança sobreviveu mais de um ano de idade”. Até então o que acontecia na região, politicamente distante de nosso próprio país, não era notícia para ninguém – e dificilmente recebia atenção do Sul, como era chamado comumente o Sudeste do Brasil. Contudo, JFK e o mundo orientam o olhar para Pernambuco e outros estados da região por conta de uma matéria que havia saído no jornal New York Times no dia anterior (lia-se o Times antes de qualquer outra fonte de informação local e sua circulação era maciça, moldava o tom dos debates e chegava fatiada – artigos soltos – a diversos países). Tad Szulc, ardiloso jornalista em ascensão do veículo, distribuiu as precisas palavras em ebulição do momento em dois artigos intitulados “Pobreza no Nordeste do Brasil gera ameaça de revolta” e “Marxistas organizam camponeses no Brasil”. Tad era, sim, dotado de uma das qualidades mais caras ao jornalista, a de descobrir pautas antes de todos. No entanto, o correspondente do jornal que dificilmente havia ido ao Nordeste até ali só tomou conhecimento da tensão social e política da região por meio de duas outras reportagens de autoria do brasileiro Antonio Callado. Ainda em 1959, no Correio da Manhã (RJ), Callado publica uma série que leva pela primeira vez para o noticiário nacional os moradores do Engenho Galileia, local de gestação das Ligas Camponesas, e a situação de extrema miséria e seca da região. (Transformada em livro com o título de “Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco”, editado pela Civilização Brasileira, em 1960.) O fio que enrosca política e jornalismo é mesmo extenso: as matérias de Callado só existiram por conta de uma articulação entre o presidente Juscelino Kubitschek e o diretor do veículo, Paulo Bittencourt. Para deslanchar a “Operação Nordeste”, JK buscou o apoio do jornal, que aí enviou o seu mais habilidoso profissional. Kennedy se preocupa com novos Castros no Brasil e o Times fala em apoio financeiro não reembolsável – desnecessário ainda comentar sobre intervenção militar – por conta do polonês Tad Szulc, que sabia seis idiomas e leu Antonio Callado, que só escreveu com o aval do dono do jornal, que, por sua vez, apoiou JK quando procurado por ele (mas aqui o interesse ainda era a miséria – ninguém falava em comunização pela pobreza). Tudo isso é contado num livro de um outro jornalista, o “Pernambuco em chamas” (CEPE, 2016), de Vandeck Santiago. O autor fez uma série de matérias para um jornalão sobre o interesse dos EUA pela região antes mesmo do golpe de 1964. Tem muito mais, é claro. Todavia, essa teia de fatos políticos e sociais é exemplo perfeito não só do poder da imprensa no caminho da história, mas dessa relação tão antinômica, que vai da objetiva fiscalização às duras farpas, mas sempre com um laço no regaço. * Especialista em Estudos Brasileiros (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP), Milena Buarque é jornalista e blogueira. Costuma escrever sobre arte, cultura, política e direitos humanos.