O Proibidão de Bolsonaro na Pérola do Atlântico e a “Filial do Samba”

Em semana festiva para a cidade de Guarujá, Tuta do Uirapuru relembra a homenagem que o balneário recebeu da Unidos do Peruche, no carnaval de 2002, antes de Bolsonaro rebolar pela cidade

Ilustração: DGC
Escrito en CULTURA el

Por Estevan Mazzuia *

“Maria do Rosário não sabe lavar panela/ Jandira Feghali nunca morou na favela/ Luciana Genro apoia os sem-terra/ Mas não dá o endereço pra invadirem a casa dela (...) as mina de direita são as top mais bela/ enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela”

Rebolando aos versos da poesia de Tales Volpi Fernandes, o MC Reaça, falecido em 2019, Jair Bolsonaro, o presidente da família e dos bons costumes, foi flagrado em dezembro, ao lado de uma jovem de biquíni, em uma lancha no litoral paulista, mais precisamente na cidade de Guarujá, para onde o parvo costumeiramente vai quando se cansa de não fazer nada em Brasília.

Com pouco mais de 300 mil habitantes, Guarujá fica na Ilha de Santo Amaro, e integra Região Metropolitana da Baixada Santista, no litoral de São Paulo. Conhecida como a “Pérola do Atlântico”, devido às suas belezas naturais, foi oficialmente fundada em 2 de setembro de 1893, emancipando-se de Santos em 30 de junho de 1934.

Inicialmente habitada por sambaquieiros, a ilha passou a ser, posteriormente, visitada pelos índios tupis que ocupavam o entorno da Serra do Mar e o Planalto Paulista, e deram ao local o nome de “Guaru-ya” (passagem estreita). Em 22 de janeiro de 1502 chegaram os primeiros europeus que, comandados por André Gonçalves e Américo Vespúcio aportaram na praia de Santa Cruz dos Navegantes, antes de seguirem para a vizinha ilha de São Vicente.

Contudo, somente em 1892, com a criação de uma vila balneária, onde hoje fica a Praia de Pitangueiras, o turismo começou a ser explorado, com a construção de algumas casas e do Hotel La Plage, onde funcionou um luxuoso cassino e, hoje, é um shopping center. A inauguração do empreendimento marcou a fundação oficial de Guarujá.

A partir de 1911, o empresário norte-americano Percival Farquhar passou a investir na cidade, onde morreria Santos Dumont, em 1932. Em 10 de novembro de 1942 foi construído o Forte dos Andradas, onde Jair Bolsonaro, o conservador em seu terceiro casamento, descansa do ócio habitual, longe da família, e cercado por jovens soldados.

Com 27 praias, e dominada por mata atlântica, ou pelo menos o que ainda resta dela, Guarujá é o destino de muitos paulistanos nos feriados ao longo do ano, e nas férias de verão. No último sábado, dia 15 de janeiro, festejou seu padroeiro, Santo Amaro. E no próximo dia 22, completam-se 520 anos do primeiro desembarque oficial dos portugueses.

A história da cidade foi tema do enredo “Guarujá, a Pérola do Atlântico”, que Jerônimo Guimarães desenvolveu para a Unidos do Peruche, no carnaval de 2002. O carnavalesco adotou a efeméride de 1502 como fundamento para a comemoração de 500 anos do município.

Conhecida como “a filial do samba”, a Peruche é uma das mais tradicionais escolas paulistanas, fundada em 4 de janeiro de 1956, como uma dissidência da Lavapés, a mais antiga ainda em atividade. Campeã em 1957, 1962 e tricampeã de 1965 a 1967, a escola, que tem como cores oficiais as mesmas da bandeira nacional, vive o pior período de sua história, iniciado em 2000, com um rebaixamento para o grupo de acesso.

Em 2002, portanto, a escola retornava ao Grupo Especial, com o intuito de voltar a frequentar as primeiras colocações, depois da adversidade.

Eliana de Lima puxou o samba composto por Arnaldo Teixeira, Fredy Viana, Misturinha e Willians do Violão:

“Quando a roleta girar, na sorte vão apostar / No meu cassino podem jogar

Agora todos vocês, batam na palma da mão  /  que emoção!”

Com 2700 componentes, distribuídos em 18 alas e cinco carros alegóricos, o desfile dividiu-se, basicamente, em três setores: o Oceano Atlântico, a história da cidade, e o turismo.

Sobre pernas de pau, artistas circenses interpretavam cavalos-marinhos, os “guardiões da pérola”, na comissão de frente.

O cassino do Hotel La Plage estava representado na segunda alegoria.

Já não mais no auge da fama, Suzana Alves, a Tiazinha, era a madrinha da bateria de Mestre Xandão, cujos ritmistas estavam fantasiados de “surfistas do amanhã”. Para o carnavalesco, no futuro os surfistas “pegarão ondas” nas nuvens.

As crianças eram peixinhos do Acquamundo, à época o maior aquário da América Latina, e as baianas representavam a mata atlântica.

Com 193 pontos, a escola terminou em 12º e antepenúltimo lugar, livrando-se por muito pouco de outro rebaixamento, que não conseguiu evitar em 2004. Voltou em 2006, caiu em 2007, voltou em 2009, caiu novamente, o mesmo ocorrendo em 2011. Retornou somente em 2016, conseguindo uma sequência de três desfiles seguidos entre as grandes. Em 2019, caiu para o terceiro grupo, onde obteve um medíocre sexto lugar, no carnaval de 2020. Em 2022, se houver desfile, a Peruche defenderá o enredo “Água… Divinas Bençãos”, desenvolvido por Mauro Xuxa. Boa sorte à Filial do Samba!

Confesso que ando triste e decepcionado com meus amigos amantes do carnaval. É inegável a importância da festa, não só do ponto de vista cultural, mas econômico, com a ampla geração de empregos diretos e indiretos. É desesperador cogitar a hipótese de mais um ano sem os desfiles.

Porém, o que me entristece é o argumento predominante daqueles que, compreensivamente, atacam às vistas grossas que o poder público e setores da sociedade têm feito a aglomerações de outra natureza. Não há dúvida de que a não realização dos desfiles de carnaval, com o argumento da pandemia, é medida lambuzada de uma amarga camada de hipocrisia. Contudo, não tenho ouvido clamores dos sambistas no sentido de que as aglomerações, todas elas, não devem ocorrer, por questões sanitárias. No fundo, todo mundo quer apenas o direito de se aglomerar. É a velha história do menininho que é pego fazendo coisa errada, e aponta por coleguinha que, mais esperto, conseguiu se safar. Não é uma luta pelo que se acredita ser correto. É uma briga pelo direito de fazer o que se acredita ser errado. E, com esse argumento, eu não posso concordar.

Enquanto a gente acompanha os impasses sobre a realização, ou não, dos desfiles este ano, temos que ouvir o chefe da nação dizer que a ômicron é um “vírus vacinal”, ignorando o aumento vertiginoso na ocupação dos leitos escolares.

Na próxima visitinha dele por estas bandas, vou convocar minha charanga pra cantar e tocar pra ele, no ritmo do seu “Proibidão” (cuja melodia, diga-se, é copiada do sucesso internacional “Baile de Favela”):

“Bolsonaro, não gosta do batente

Bolsonaro, faz um favor pra gente

Pegue suas trouxas, volte para a Barra

Deixe o Palácio para quem quer ser presidente”

Vai passar

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.