A reação à nova música de Chico Buarque e o moralismo desta geração

Nathalí Macedo em artigo irretocável sobre a pendenga que envolve “Tua Cantiga”: “Fica difícil construir um debate saudável com uma militância que não ouve ninguém, não respeita quem lutou antes dela e que preside, como diria Tom Zé – sim, inatacavelmente – o Tribunal do Facebook.”.

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Nathalí Macedo em artigo irretocável sobre a pendenga que envolve “Tua Cantiga”: “Fica difícil construir um debate saudável com uma militância que não ouve ninguém, não respeita quem lutou antes dela e que preside, como diria Tom Zé – sim, inatacavelmente – o Tribunal do Facebook”. Por Nathalí Macedo, no DCM  A nova música de Chico Buarque é sobre um casal de amantes adúlteros. Nada de novo sob o sol: ele adora falar de adultério em suas canções tanto quanto sobre política. É uma música bonitinha sobre aquele amor proibido que nunca desiste. Aquele amor do Chico Buarque. Não é nenhuma “Apesar de Você”, não é nenhuma “Geni e o Zepelim”, mas está encharcada de amor e adjetivos e um pouco de sacanagem – adultério, no caso – e ainda é uma música de Chico Buarque. Qualquer musiquinha de Chico é melhor que os singles de alguns dos lacradores da neoMPB. Sorry. Quanto ao adultério, ok, pra mim, mesmo porque adultério deixou de ser crime há algumas décadas. Mas não OK para a internet, que caiu de pau e pedra em cima da canção em questão – uma música cafona e objetificadora que não representa a sociedade artística revolucionária do Século XXI. A mesma esquerda que condena a caretice condena também uma música porque ela fala de adultério. Eu perdi alguma coisa? “O Chico Buarque não me representa”, eles dizem, como se Chico quisesse representar alguém. Como se representar alguém, um grupo ou uma ideologia fosse a única função da arte. Como se todas as contribuições de Chico Buarque para a música brasileira devessem ser anuladas só porque ele não tem como musa a mulher empoderada do Século XXI. Essa geração deve achar que tem nove planetas a girar ao seu redor. Música cafona é o que há. Aliás, eu não sei o que seria da música sem a cafonice. Eu vou tirar você desse lugar. Eu vou levar você pra ficar comigo. Garçom aqui nessa mesa de bar. No Corcovado quem abre os braços sou eu. E, vamos combinar, cafona é condenar uma letra com métrica perfeita, metáforas finíssimas e arranjos fofos a la Chico Buarque só porque não foi escrita com o vocabulário que reza a cartilha: (cante no ritmo!) “subiu na lacração como se fosse viada/ ergueu na militância duzentos gêneros sólidos/ minissaia com batom num manifesto mágico/ seus olhos embotados de cílios postiços /tentou delinear como se fosse lacre!!!!!!!!!!!11’” Assim fica menos cafona? A julgar pelas gargalhadas do Chico Buarque lendo comentários a seu respeito na internet, ele provavelmente não se considera inatacável. Tampouco eu o considero. Ninguém é inatacável. Aliás, como diz a pensadora contemporânea Inês Brasil, se me atacar, eu vou atacar. O ataque é necessário, move a engrenagem. O debate é necessário. O que é desnecessário – e ridículo – é agir como se essa geração fosse a responsável por práticas “revolucionárias” que vêm sendo feitas desde mil e novecentos e bolinha e vêm sendo feitas exatamente por essa gente cafona que os artistas revolucionários lacradores do Século XXI sentem-se no direito de desprezarem. Eles, que não são ídolos de ninguém, apenas de si mesmos, porque todo o eco que se cria em torno da arte que eles produzem é um eco vazio de ideologia e cheio de ego. O eco do ego poderia aliás ser o título de um filme indie sobre a nossa geração. Eles, que dizem quebrar tabus que vêm sendo destruídos há décadas, como Johnny Hooker referindo-se à sua matriz, Ney Matogrosso. Fica difícil construir um debate saudável com uma militância que não ouve ninguém, não respeita quem lutou antes dela e que preside, como diria Tom Zé – sim, inatacavelmente – o Tribunal do Facebook. E no Tribunal do Facebook, Chico Buarque, em algum momento, assim como todos nós, precisaria cair.