Saudade do que a gente não viveu? “E por falar em saudade...”

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia exalta a saudade dos velhos tempos, relembrando o desfile da Caprichosos de Pilares em 1985

Foto: Wikipédia
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Por Estevan Mazzuia *

Saudade: palavra de origem no latim que indica sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas.

Após 13 meses de isolamento social, impedidos de vivermos experiências prazerosas, não há como não sentir saudade do que a gente não viveu, como diria o “menino Ney”, com sua filosofia de conquistador.

Filosofia por filosofia, prefiro a afirmação de que não deveremos desejar a volta à normalidade, porque a normalidade era o problema.

De fato, de 2013 pra cá, o Brasil vive uma normalidade bem problemática. A CPI da Pandemia, finalmente iniciada na última semana, deve esquentar nesta, com os primeiros depoimentos, incluindo os dos ex-ministros da Saúde. Que implicações os resultados da CPI trarão sobre o futuro do Brasil, somente o tempo dirá. Mas o importante é ter em mente que Bolsonaro não é causa da atual normalidade, mas consequência dessa normalidade que despertou ali em 2013, por causa de 20 centavos.

Uma normalidade na qual o tal Silas Malafaia, que se apresenta como uma espécie de porta-voz da vontade divina, arremessa seu rebanho ao precipício, defendendo que o isolamento social e o fechamento do comércio causam mais mortes do que o coronavírus. Ou ele desconhece o caso de países como Austrália e Nova Zelândia, onde a pandemia é parte de um passado que não deixa saudade, ou tem suas razões para fingir desconhecer.

Uma normalidade que obriga um ministro de Estado a tomar vacina escondido do presidente da República, porque o projeto de governo é a morte, mas ele tem netos e uma esposa maravilhosa, e não quer acabar como 410 mil brasileiros, que acredita não terem famílias especiais como a dele.

Uma normalidade na qual o ministro da Economia culpa a longevidade da população pelo atraso no desenvolvimento da economia. Em uma pesquisa de padeiro na internet, apurei que os países com maior expectativa de vida no mundo são Mônaco, Macau, Japão, Cingapura, San Marino, Andorra, Guernsey, Hong Kong e Itália. Ah, e Austrália. Países mundialmente reconhecidos pelas privações pelas quais passam seus habitantes. Verdadeiras comunidades periféricas a esse Brasil em que vive Paulo Guedes.

Mas, para a alegria de Guedes, a expectativa de vida do brasileiro já caiu 2 anos durante o governo Bolsonaro e o número de mortos deve ultrapassar o de nascidos em breve. Se a saúva não acabou com o Brasil, o governo Bolsonaro pode conseguir. Capacidade ele tem. Só precisamos lhe dar um pouco mais de tempo. Aliás, Paulo Guedes, com seus 71 anos, poderia ser a prova de que a longevidade é mesmo um problema para o Brasil, não tivéssemos tantos outros exemplos na contramão.

Essa normalidade voltou a soltar suas asinhas, no último sábado. No Dia do Trabalhador, a pandemia nos privou das tradicionais manifestações de celebração pelas conquistas das lutas sindicais, mas nos brindou com as boas e velhas camisas amarelas “autorizando” o marginal (à margem da lei) que ocupa o Palácio do Planalto a fazer sabe-se lá o que, em prol de sabe-se lá o que. Aparentemente, protestam pelo fim do direito de se manifestarem, e para que seu ídolo tenha carta branca para fazer o que quiser. Em nome de algo que chamam de democracia, o desejo daqueles milhares de pessoas deve se impor à vontade de mais de 200 milhões de brasileiros.

Essa nova normalidade fez-me sentir saudade da Caprichosos de Pilares, que se eternizou na Sapucaí com desfiles alegres e irreverentes. Em 1985, “E Por Falar em Saudade”, desenvolvido por Luiz Fernando Reis, com figurinos de Flávio Tavares, conquistou o 5º lugar entre as 16 escolas do grupo especial, com 214 pontos, o melhor resultado da história da agremiação.

O samba de Almir de Araújo, Balinha, Marquinho Lessa, Hércules e Carlinhos de Pilares, que o puxou na avenida, marcou uma geração, apesar de ser, verdadeiramente, uma marchinha:

Oh! Saudade, ô / Meu carnaval é você / Caprichosamente Vamos reviver, vamos reviver...

"Saudadeando" o que sumiu no dia-a-dia / Na fantasia de um eterno folião

O bonde / O amolador de facas / O leite sem água / A gasolina barata

Aquela Seleção Nacional / E derreteram a taça na maior cara-de-pau

Bota, bota, bota fogo nisso / A virgindade já levou sumiço  (bis)

Diretamente, o povo escolhia o presidente / Se comia mais feijão

Vovó botava a poupança no colchão / Hoje está tudo mudado

Tem muita gente no lugar errado

Onde andam vocês, ô ô ô / Antigos carnavais? / Os sambistas imortais

Bordados de poesia / Velhos tempos que não voltam mais / E no progresso da folia...

Tem bumbum de fora pra chuchu / Qualquer dia é todo mundo nu... (bis)”

Divididos em 32 alas, os 4 mil componentes defenderam o enredo saudosista, sob o escaldante calor de meio dia, da sétima escola a desfilar na segunda noite de desfiles, já na manhã de 19 de fevereiro.

Com fantasias e alegorias simples, mas criativas e comunicativas, proporcionando a leitura do enredo pelo público, a escola foi recebia em êxtase pelas arquibancadas da Praça da Apoteose, coloridas pela infinidade de sombrinhas abertas para combater o sol. Uma ala representava os fotógrafos lambe-lambe; em outra, os sambistas eram verdadeiras urnas, representando a saudade de se escolher o presidente da República (para acabar fazendo o que fez em 2018...).

Amoladores de faca abriam o desfile, na comissão de frente, seguidos por um pede-passagem em que a palavra “saudade” era formada por pastilhas coloridas muito utilizadas na época, com excelente efeito.

Saudade dos sutiãs, anáguas, galochas, ligas, espartilho, samba-canção... Saudade de ver o Botafogo campeão (uma alegoria em formato de bolo “festejava” o décimo sexto ano sem títulos, do alvinegro carioca), o leite sem água, a gasolina barata, o dinheiro que se guardava no colchão; saudade do velho bonde (com o letreiro “Democracia 85” em outra alegoria) e do teatro de revista (cujo carro, com problemas, não entrou na avenida, obrigando os destaques e composições a desfilarem no asfalto)... Todo esse saudosismo desfilou pela Sapucaí.

Tripés entre as alas lembravam os comícios na Central do Brasil, os antigos corsos, a Amazônia preservada (atual, não?). Outro fazia menção à última Copa do Mundo até então conquistada pela seleção brasileira de futebol, no México, em 1970, cujo troféu, a Taça Jules Rimet, fora roubado e derretido para ser comercializado como ouro. Em uma ala, componentes ostentavam cartazes, onde se liam as mais diversas mensagens: “por uma pátria livre e independente”; “liberdade de opinião”; 75% querem comer”.

No final do desfile, mais problemas com uma alegoria, que tinha a escultura de quatro grandes nádegas ladeadas, e precisou ser rebocado para sair da avenida.

Inicialmente punida com a perda de 10 pontos, por ter estourado o tempo máximo de desfile, a escola foi perdoada, assim como algumas de suas coirmãs, num ano que a própria Liga não respeitou o cronograma: depois de problemas com o Império Serrano, que acabou desfilando após a Imperatriz Leopoldinense, que já estava pronta na concentração, invertendo-se a ordem original dos desfiles, a Portela deixou a Sapucaí somente por volta das 14 horas. Tempos românticos, em que até a desorganização deixa um pouco de saudade.

Fundada em 19 de fevereiro de 1949, a Caprichosos de Pilares completava 36 anos de existência naquela manhã que entraria para sua belíssima história. Berço de artistas como Dudu Nobre, Xande de Pilares, Simone e Sandra de Sá, a escola é uma dissidência da extinta Unidos de Terra Nova, tem como cores o branco, o azul royal e o azul turquesa (as cores originais eram o vermelho e o branco), e a Portela como madrinha. Em seu símbolo, duas serpentes, inspiradas na cobra fumando, da FEB, ou no bordão de Asclépio, símbolo da medicina, remetem ao poder do réptil no combate contra outros animais–símbolo, como o leão da Estácio de Sá, ou mesmo a águia da Portela.

Rebaixada em 96, a escola voltou em 98, sendo novamente rebaixada em 2006. Desde então, entrou em um período de decadência que culminou com o rebaixamento à série D, equivalente à quinta divisão, em 2018 (nesse interim, a escola chegou a reeditar, sem o mesmo sucesso, o enredo de 1985, terminando em sétimo lugar no grupo A, segunda divisão). Em meio à crise e fortes disputas políticas internas, a escola nem desfilou em 2019, sendo rebaixada para a sexta e última divisão.

Com reconfigurações na organização do carnaval, desfilou no “acesso da Intendente”, equivalente a uma quarta divisão, sagrando-se campeã, com uma reedição do enredo de 1979, indicando que os problemas podem ter ficado para trás.

Tomara. Se vivemos um presente que não deixará saudade, temos certeza de que as críticas sociais da Caprichosos de Pilares fazem muita falta no desfile principal, com seus deliciosos esculachos no “establishment”.

Que saudade!

P.S. A coluna de hoje é dedicada a Noel Rosa, o Poeta da Vila, que em 04 de maio de 1937 nos deixou, com apenas 26 anos de idade, e uma obra imortal.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.