Sem telencéfalo altamente desenvolvido, JB nos transformará numa Ilha das Flores

Na coluna de hoje, Tuta do Uirapuru celebra o Dia do Feirante, relembrando diversas vezes em que as feiras livres foram tema de carnaval, e lamentando a volta da inflação

Ilustração: DGC
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Acho engraçada a revolta de um grande amigo ante as feiras-livres. Segundo ele, trata-se da última herança das eras medievais (ele dizia isso antes do terraplanismo ser liberado das catacumbas bolsonaristas, obviamente). Não posso discordar. Absolutamente tudo mudou desde que eu nasci. Menos as barraquinhas das feiras-livres.

Sempre curti as feiras. Até porque nunca tive uma na porta de minha casa. Adorava esperar as quintas-feiras, para ir com minha avó comprar as frutas e verduras que perfumariam o lar ítalo-matriarcal pelos próximos sete dias. Ela era daquelas que furavam tudo com as unhas compridas, para verificar a qualidade.

A relação entre quintas e feiras era tão intrínseca para mim que foi difícil assimilar que terças, quartas e sextas também eram dias de feira. Até sábados e domingos. Menos as segundas, em que a “feira” é do feirante.

Hoje sou avó de mim mesmo, e “faço a feira” sozinho. Invariavelmente, de unhas cortadas. Arrumaria briga com minha avó se a visse testando a consistência de um tomate.

Sou fã aquela gritaria que não leva a nada, permeada por pequenas tertúlias de “amigos de feira”. Aquela deliciosa disputa calada pelas laranjas... aquele “tira a mão daí” imposto pela maneira de mergulhar a mão entre as frutas... até a cumplicidade na hora de aproveitar a barganha iniciada pelo rival.

Os ares das feiras nos tornam mais complacentes inclusive com os vizinhos insuportáveis. E quase nunca chove na hora da feira, pode reparar. Feira é uma confraternização que não combina com chuva e São Pedro sabe disso.

E a aparente desorganização é tamanha que as coisas funcionam meio que no fio do bigode. Feirante bom nunca está atendendo menos de três clientes por vez. Geralmente eu sou o quarto. Pego o que quero, coloco na minha sacola, e entrego o dinheiro. O pobre coitado olha pra mim, pergunta quanto deve cobrar, e me deseja uma boa semana. Eu não imagino como eles conseguem saber o que entrou e o que saiu. Mas, semana que vem, lá estaremos reencenando nosso roteiro.

Adoro as oportunidades da xepa. Agora essa estória de xepa da vacina... Que acinte! Mas os primeiros horários também são deliciosos, quando “l'argent” permite. O colorido de uma feira-livre recém-iniciada só é comparável ao de uma tela de Di Cavalcanti. Já a xepa, está mais para um Arcimboldo, assim meio sorumbática.

Em 1982 a Caprichosos de Pilares levou para a Sapucaí o enredo “Moça bonita não paga”, de Luiz Fernando Reis. O samba de Ratinho dizia:

“Quando vem o amanhecer / Um pouco antes do sol nascer

A feira livre está pronta / E nela desponta a cabrocha Lili

(...)

Vai seguindo seu caminho / Mas seu semblante se modifica

A flor se fere no espinho / Da inflação que se agita”

A escola sagrou-se campeã do grupo de acesso, voltando ao grupo especial depois de mais de 20 anos de ausência.

Embora seja o desfile mais icônico sobre o tema, em diversas outras oportunidades as feiras foram enredo de carnaval.

Em 1992 a União Independente da Zona Sul conquistou um vice-campeonato e o acesso ao quarto grupo paulistano cantando os seguintes versos de Júnior e Lula:

“Bem mal nasce o sol / aurora anuncia o arrebol

feira livre é poesia / vem na barraca pegar sua bacia”

Feira livre é poesia! Alguém contesta?

Ainda em São Paulo, em 1998, a Independentes do Jardim Mirian anunciou o enredo “Feira livre” e o samba de Jacó e Ari da Cartola:

“Feira, concentração popular / arte de vender / e artimanha comprar”

Porém, a agremiação acabou não desfilando, e foi desclassificada, no último grupo.

Em 2003 foi a vez da tradicionalíssima Lavapés levar as feiras para a avenida, com “Da Medieval à Atual, Eu Vendo, Você Compra, Na Feira Tudo se Encontra”, uma abordagem mais histórica, nos versos de Danilo, Mydras e Rodrigo:

“Vem de longo tempo, da era medieval / expor, vender, comprar, que grande

Festa, começou em Portugal... no Foral

(...)

Nos reinados o prestígio se mantém / de tecidos a animais, se tudo um pouco / se vendia bem”

A escola terminou em quinto lugar no quarto grupo, a uma colocação do acesso.

“A feira nossa de cada dia” foi o enredo da Dragões de São Miguel em 2006 (13º lugar no quinto grupo), com samba da dupla Xuxa do Cavaco e Mauro Pirata:

“Moça bonita, menina, donzela / aqui não paga, mas também não leva

Na promoção, quem ganha sempre é o freguês / pagando dois, quem sabe pode levar três”

A feira voltou a aparecer no carnaval do Rio de Janeiro em 2013, pela Acadêmicos do Dendê, da Ilha do Governador (Pode Chegar Freguesa! O Dendê Mostra a Cultura e Alegria da Feira! – 5º lugar no quarto grupo):

"Se liga que a feira já vai terminar / É hora da xepa! / A limpeza vai passar”

Em 2015, três agremiações paulistanas carnavalizaram as feiras: a Lavapés, novamente, a Valença Perus e a Estação Invernada.

A Lavapés foi campeã do último grupo com "Eu vendo, você compra; nas feiras, tudo se encontra”, de Horácio Rabaça. Já a Valença de Perus foi rebaixada para o último grupo, com “Feira livre”. E a Estação Invernada permaneceu no penúltimo grupo, com “No mar de cores e aroma irei mergulhar: a feira, 100 anos vai comemorar”, considerando como marco inicial o ato do então prefeito de São Paulo, Washington Luís, instaurando no Largo do Arouche a primeira feira livre em São Paulo, em 25 de agosto de 1914 (daí ser, o 25 de agosto, Dia do Feirante).

Outra agremiação paulistana, a Flor de Vila Dalila, foi ainda mais específica em seu carnaval de 1991, com o enredo “25 de Agosto – Dia do Feirante”, de José Roberto de Souza, conquistando apenas o 10º lugar no grupo de acesso, com samba de Lalo:

“Dona Maria traz / traz a cesta ou a bacia / olha a banana nanica

Olha a laranja bahia / moça bonita não paga / nem leva a mercadoria”

Em meu levantamento, a última aparição da feira na avenida foi bem-sucedida: a Unidos de Guaianases venceu o último grupo do carnaval paulistano em 2018, com o enredo “Guaianases vai à Feira e faz a festa”.

Embora tenham sido amplamente exploradas por agremiações de grupos inferiores, as feiras aguardam seu grande momento no Anhembi ou na Sapucaí. Um tema alegre, colorido, “carnavalizável”, merecia um desfile de primeiro grupo.

A realidade atual, infelizmente, passa longe da alegria. Nos primeiros doze meses da pandemia, a inflação de alimentos foi de 15%, enquanto a inflação geral foi de 5,2%, segundo o IBGE.

Com o desemprego disparando, e as despesas consumindo cada vez mais o salário de quem conseguiu manter o emprego, aquele “momento Di Cavalcanti” tem ficado às moscas. A Lili, a Dona Maria, a moça bonita, e esse que vos escreve, têm preferido o “momento Arcimboldo”.

Com o país desgovernado por um inepto que passa horas no twitter e no whatsapp, requentando mentiras desmascaradas há muito tempo, e um ministro da economia preocupado em garantir que empregadas domésticas nunca mais frequentem aeroportos, resta-nos torcer para que o “momento Arcimboldo” não vire de vez uma “Ilha das Flores” de Jorge Pontual, devolvendo serventia àquele tomate há muito tempo testado pelo polegar opositor de vovó.

P.S. A coluna de hoje é dedicada a Amadeu Pires de Camargo, grande baluarte da X-9, a Pioneira, de Santos/SP. "Seu Amadeu" partiu no último domingo, nos deixando um extenso legado de "causos" e ensinamentos. Vá em paz, Mestre!

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.