Violência: se essa onda pega, vá pegar noutro lugar!

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia lamenta o assassinato de Kathlen Romeu, grávida de 14 semanas, e relembra o desfile da São Clemente em 1988

Escrito en CULTURA el

Por Estevan Mazzuia *

Era 3 de setembro de 1998. Uma garota chora sobre o passeio de uma das mais movimentadas avenidas do Rio de Janeiro. Todos os sonhos de uma vida interceptados por um maldito projétil de arma de fogo, que não fora direcionado a ela. A imagem do choro desesperado de Camila Magalhães Lima, uma menina linda, de apenas 12 anos de idade, jamais saiu de minha lembrança. Graças à internet, volta e meio procuro saber como ela está. Ficou tetraplégica. Em 2016, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro fixou o valor de seu futuro perdido em R$ 900 mil e uma pensão vitalícia. De um salário mínimo mensal. Em uma conta de padeiro, considerando que uma pessoa viva uns 30 mil dias, Camila receberá R$ 70,00 por dia, como “compensação” por ter ficado tetraplégica pela ineficiência estatal.

Esse valor parece ser previamente contabilizado pelo Estado, que segue orientando seus agentes a “mirar na cabecinha” dos suspeitos de sempre, negros pobres e, eventualmente, se acertarem alguém que esteja no lugar errado e na hora errada, o prejuízo está na conta. Não o prejuízo do atingido, obviamente.

Na semana passada, mais uma jovem, Kathlen Romeu, de 24 anos, grávida de 14 semanas, estava no lugar errado, na hora errada. Mais um pouco de comoção nacional e já virou estatística. Passado. Uma publicação na internet basta para que lavemos nossas mãos. Vida que segue. Para nós, ao menos. E por enquanto. Nunca se sabe o dia de amanhã. A única certeza que temos é que, como Camila, Kathlen não foi, nem será, a última vítima.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 860 mil presos. Ainda assim, vive-se uma eterna sensação de impunidade por aqui. Prendemos muito, mas prendemos mal. Por falta de estrutura policial, 94% dos homicídios não são solucionados no país. E enquanto a força policial brasileira é uma das que mais mata no mundo, não dá pra dizer que a criminalidade venha caindo.

Continuamos seguindo a ultrapassada cartilha da repressão, acreditando que leis serão capazes de frear os instintos criminosos. É uma visão rasa e reacionária de que a maioria dos criminosos haja racionalmente, por prazer, creem alguns. Crimes ocorrem em todos os lugares do mundo e as prisões são construídas para manter separados da sociedade aqueles que não se adequam às regras.

Quando você elimina o cidadão da sociedade, excluindo-o de todo o sistema de amparo estatal, e tirando-lhe todas as oportunidades de alcançar o sucesso profissional, para muitos o crime acaba se tornando a última opção para alcançar valores de aceitação social. Bem simploriamente, essa é a aplicação da anomia de Durkheim à teoria de origem do crime, defendida por sociólogos renomados, como o francês Löic Wacquant, radicado nos EUA, e autor de “Punir os Pobres – a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”, entre outros.

Não faltarão aqueles que dirão que nem todos os excluídos partem para a criminalidade. Muitos se submetem a enfrentar cinco horas diárias de condução lotada, e algo como quatro horas de sono por dia, para ganhar pouco mais de mil reais ao fim de um mês. Sim, essa é a verdade que justifica, entre outras políticas, a manutenção do sistema repressivo atual. Contudo, as teorias da origem do crime não buscam justificá-lo, mas explicá-lo. Cabe a nós decidirmos o que fazer com as informações científicas.

A guerra contra as drogas, que já dura mais de meio século, está aí pra nos mostrar o “sucesso” das medidas repressivas (e aqui aproveito para lembrar que campanhas educativas, e outras medidas administrativas, conseguiram reduzir, sensivelmente, o uso do tabaco).

E seguimos na contramão do óbvio: JB, o defensor da família brasileira, atua para que possamos ter seis armas em casa. Para autodefesa. Um calibre 38 tá saindo por uns R$ 3 mil. Certamente não será fácil para que os brasileiros adquiram seu vale-segurança. Mas com isso, JB parece ter cumprido sua função. Com uma canetada, se livra da obrigação de qualificar as forças de segurança pública. Claro, as polícias civis e militares são forças estaduais, mas o governo federal pode e deve atuar em conjunto com os entes federativos.

JB está, na verdade, armando suas milícias para o golpe que dará, tão logo acredite que seja viável. A despeito da corrosão que vem provocando, diuturnamente, em nossa democracia, parece que esse dia não chegará. Mas a provável derrota nas eleições de 2022 certamente o levará à sua tresloucada cartada. Superaremos. Não sem dor. Não sem mortes.

Armar a população não é garantia de tranquilidade. Principalmente quando a medida vem em um pacote no qual o rastreamento das armas é inviabilizado, e os requisitos para se adquirir uma arma são flexibilizados.

Enquanto isso, seguimos em meio a esse bangue-bangue.

Como dizia uma alegoria da São Clemente, em 1988, “violência gera violência”, parafraseando o Profeta Gentileza.

Aliás, poucas escolas de samba teriam condições de carnavalizar um tema tão delicado como a preto-e-amarelo da Zona Sul que, ao lado da Caprichosos de Pilares, caracterizou-se pela crítica social em seus desfiles.

Quinta escola a desfilar em 14 de fevereiro de 1988, com o enredo “Quem Avisa, Amigo É”, desenvolvido por Carlinhos Andrade e Roberto Costa, a agremiação de Botafogo (invariavelmente a única da zona sul no desfile principal, a despeito de, há muito tempo, realizar suas atividades na área central da capital fluminense) gritou contra as mais diversas formas de violência: contra a natureza, contra os índios, contra os negros, contra as mulheres, contra as crianças, contra nordestinos, sem esquecer da violência do cotidiano, de assaltos e homicídios, salientando que autores e vítimas estão submetidos à violência do capitalismo, a monstruosidade do acúmulo de riquezas, e da burocracia, que protege quem pratica as diversas formas de violência.

Um homem vestido de bailarina simbolizava a pomba-da-paz na comissão de frente. Os demais elementos representavam as diversas formas de violência. Para se defender, a pomba usava seus passos de ballet, e carregava um providencial fuzil (de brinquedo, é bom frisar).

Três grandes monstros foram apresentados ao longo do desfile: um destruidor da natureza, um comedor de gente, e o monstro da violência, dona de tudo e de todos.

Em meio aos 4.500 componentes, divididos em 32 alas e 14 alegorias, viam-se sugestivas mensagens:

“Violência é Tchernobil (sic), Angra, Cubatão e, agora, Goiânia” (em referência ao acidente nuclear na então União Soviética, em 1986, e o caso do césio-137, em Goiás, em 1987)

“Violência são campos sem flores, bosques sem vida, e vida sem amores”

“Violência é entender que Amélia é a mulher de verdade”

“Violência é comemorar sem anos de libertação” (um delicioso trocadilho com o centenário da abolição da escravatura, “festejado” aquele ano)

“Violência é ter que engolir a bomba do Riocentro”

“Violência é o povo dever o que não gastou”

Usando e abusando de suas cores oficiais, a escola apresentou alegorias pequenas, mas com inteligente uso de espuma, ainda raro na época, proporcionando economia, e flexibilidade às esculturas. As fantasias eram simples, mas funcionais.

A modelo Monique Evans foi um dos grandes destaques, à frente da ala de passistas, depois de haver desfilado alguns anos à frente da bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel.

O último setor saudava o triunfo da paz sobre os monstros da violência, e trazia uma linda ala de baianas, em branco e prata, simbolizando as pombas da paz.

A conclusão da São Clemente também estava explícita em uma alegoria:

“Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come.

Mas, se a gente se unir... o bicho foge!”

Com 197 pontos, a escola terminou em 12º lugar entre as 16 escolas do Grupo Especial, do qual participava pela quarta vez em sua história, iniciada em 25 de outubro de 1961.

O samba, de Izaias de Paula, Helinho 107 e Chocolate, não era exatamente um primor, mas o refrão, puxado por Geraldão, e pelo próprio Izaías de Paula, era um sacode:

“Se essa onda pega / Vá pegar noutro lugar

Quem avisa amigo é / São Clemente vai passar”

Na época, a vênus platinada usava o slogan “essa onda pega”, e teve que cortar um doze, durantes a transmissão, para disfarçar a crítica nada velada.

Trinta e três anos depois, os monstros estão de volta, mais fortes do que nunca. Intolerância, desigualdade, fome, tortura, inflação...

Seguimos combatendo hoje da mesma maneira que há 33 anos, e os resultados são cada vez piores.

Mais no que nunca, precisamos estar unidos. Por novas políticas criminais e sociais, pela desmilitarização da polícia.

Se seguirmos por mais 33 anos esses modelos falidos, quantas Camilas e Kathlens teremos contabilizado em 2054?

Quem avisa, amigo é.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.