Você sabe o que é um recorte curatorial de cinema?, por Filippo Pitanga

Venha com a gente entender melhor como funciona a realização de um festival, exemplificado no balanço do exercício do 27º Festival de Cinema de Vitória, que se encerrou há poucos dias, coroando o cinema LGBTQIA+.

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Você sabe o que é um exercício curatorial de cinema? Como funciona e para que serve? Existe alguma coisa especial em selecionar e agrupar filmes diversos para potencializar uma história maior, montada como peças de um quebra-cabeça? Você pode comprovar com seus próprios olhos e ouvidos o poder do audiovisual conferindo os registros do sucesso do 27º Festival de Cinema de Vitória, que ainda virou internacional, colocando o Espírito Santo no mapa global através de sua primeira edição online. Além de ter homenageado este ano o grande Gilberto Gil, cujo debate com o mestre e outros encontros com elenco e equipe dos filmes premiados em competição podem todos ser vistos no YouTube do Festival (clique aqui).

Tendo rolado entre os dias 24 e 29 de novembro, uma incrível seleção de longas e curtas-metragens veio tecendo uma narrativa maior no quadro geral por meio da combinação dos filmes que são desfilados em sequência. Cada sessão contou sempre com um debate no dia seguinte, mediado por este que vos escreve e pela crítica de cinema e também roteirista Viviane Pistache, consultora de desenvolvimento de roteiro pela Globo e O2 Filmes. E, a cada debate, fomos desvelando as intenções por trás das escolhas e processos de diálogo entre os filmes que ressignificam suas simbologias individuais.

Logo no primeiro dia, um tema pôde ser identificado a sobressair na seleção, como através da emancipação de direitos e da liberdade de existir, de ir e vir. Sim, infelizmente ainda existem trabalhos forçados na contemporaneidade, o que traz à pauta a escravização moderna, especialmente em regiões menos alcançadas pelo poder público, que talvez tenha segundas intenções em fazer vista grossa...

Esta situação é fortemente denunciada pelo filme “Pureza”, de Renato Barbieri, que acabou de levar o prêmio de melhor atriz para Dira Paes pelo júri técnico e melhor filme pelo voto de público. Pudemos, inclusive, debater com o diretor brasiliense, bastante experiente em documentários, sobre a construção ficcional da personagem, que é inspirada em fatos reais (confira mais aqui). A história verídica versa sobre a ativista Pureza Lopes Loiola, a qual foi em busca de seu filho aliciado por trabalhos análogos à escravidão, desde o Maranhão até o Pará, e ganhou o Prêmio Antiescravidão 1997, em Londres, por esta jornada. Vale ressaltar que a intérprete Dira Paes, em talvez uma das melhores atuações de sua carreira, também é uma atriz extremamente engajada neste sentido, empenhando-se em várias ONGs através das quais ela própria já conhecia o histórico de luta da personagem que interpretou.

Os outros filmes da sessão foram curtas-metragens que ampliaram o escopo disso, como o impactante “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, de Rodrigo Ribeiro, um ensaio com imagens de arquivo em preto e branco, em torno do período colonial, para materializar a leitura de uma carta de suicídio de um ex-escravo que jamais aceitaria aquelas condições outra vez. A potência disto na tela gera uma correlação étnico-racial com os outros filmes, que ainda incluíam o alagoano “Ilhas de Calor”, de Ulisses Arthur, sobre decolonizar o machismo estrutural que afeta meninas cis e trans na formação escolar (leia mais aqui), a homenagem à la “Cinema Paradiso” que mostra como o amor pelo cinema desde cedo pode emancipar as crianças, mesmo contra todas as adversidades, no lírico “4 Bilhões de Infinito”, de Marco Antônio Pereira, mineiro de Cordisburgo, terra de Guimarães Rosa, e o capixaba “90 Rounds”, de Juanne Vaillant e João Oliveira, num doc que fala da influência positiva do hip hop em construir identidades a partir de comunidades e olhares periféricos a um eixo hegemônico.

No debate sobre a segunda leva de filmes em competição (confira aqui), o destaque ficou para o longa-metragem indígena ganhador de menção honrosa pelo júri técnico “Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito”, de Sueli e Isael Maxakali, numa das obras mais marcantes do ano. Neste, acompanhamos um raro registro audiovisual do exercício de autofabulação nas performances ritualísticas da Aldeia Verde Maxakali. E com forte recorte do olhar das mulheres, como com o mito de sua transformação numa jiboia, gerando imagens poderosas da relação do ser com a natureza, ou mesmo do reequilíbrio entre o masculino e o feminino nesta cosmologia, que também performam sua própria incorporação desta serpente composta originalmente pelas mulheres.   

Diante de todo este tema de territórios reocupados por corpos e narrativas em geral invisibilizadas, ainda tivemos o curta-metragem amazonense “Manaus Hot City”, de Rafael Ramos, perpassando vivências do dia a dia de personagens trans e pelo esclarecimento de direitos dos soropositivos, o brasiliense “Parte do que Parte Fica”, de Camilla Shinoda, filmado no apartamento que já foi do grande artista Athos Bulcão e redimensionando o poder do reencontro e da despedida de um casal a partir da interseccionalidade de gênero e de raça, o ganhador de menção honrosa de montagem pelo júri técnico para “Ser Feliz no Vão”, de Lucas Rossi, documentário ensaístico que hackeia as praias da elite carioca em democratização do bem comum a todos, e o premiado como melhor filme pelo júri popular e menção honrosa de melhor elenco para “Inabitáveis”, de Anderson Bardot, numa poderosa coreografia pelo amor livre, que dança pelos monumentos capixabas do passado e pelos quadros da tela como se pudessem decolonizar o cenário num piscar de olhos, com a passagem de um corte pro outro, num tributo à transfiguração do tempo da saudosa mestra ucraniana na vanguarda do cinema Maya Deren (leia mais aqui e aqui).

Já em sua terceira noite competitiva da mostra nacional de longas e curtas-metragens (confira aqui), tivemos um recorte onde todos os filmes eram protagonizados e dirigidos por ao menos uma ou mais mulheres nas funções principais, ou mesmo dividindo a direção coletivamente entre pessoas não binárias, seja de mulheres ou homens trans, tornando esta uma sessão desconstrutiva e crítica à estética imposta pelo cinema da tóxica normatividade patriarcal.

De plano, dois longas-metragens exemplificaram isso. Pra começar, o ganhador de melhor roteiro e menção honrosa de fotografia, “O Livro dos Prazeres”, de Marcela Lordy, adaptação de Clarice Lispector no ano de seu centenário, e estrelado pela grande Simone Spoladore, além de elenco de suporte de peso como Martha Nowill, Felipe Rocha e ponta da impagável Fernanda Chicolet (do Cult “Demônia – Melodrama em 3 Atos” de 2017). Também podemos citar, na mesma noite, “Um Dia com Jerusa”, de Viviane Ferreira, primeiro longa de ficção com direção solo por uma cineasta negra a ser lançado no circuito desde “Amor Maldito”, de Adélia Sampaio, em 1984 (leia mais aqui e aqui). Encabeçado pela icônica Léa Garcia, que ganhou melhor contribuição artística, e sua companheira de cena à altura Débora Marçal, ainda conta com participações especiais muito representativas como os baianos Antônio Pitanga e Valdinéia Soriano, etc. 

Ambos filmes supracitados, curiosamente, traziam uma peculiar cena rara em comum: a inversão da nossa percepção e da imagem na tela através do recurso visual da câmara escura, uma referência que podemos lembrar no famoso curta mineiro “Pouco Mais de Um Mês”, de André Novais, premiado no ano de 2013 em Cannes e depois no IndieLisboa. Uma força evocada da inversão das imagens no cinema para decolonizar o olhar e nossas expectativas e cuja simbologia poderia ser encontrada também de outras formas nos demais filmes da sessão.

Há de exemplo o grande premiado como melhor curta-metragem pelo júri técnico, “Perifericú”, de equipe e elenco predominantemente não binário, como Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira, que subvertem e ressignificam as imagens na tela, bem como acepções sociais e aleturgias, trazendo de volta a representação evangélica para contemplar a comunidade LGBTQIA+, como toda fé deveria, ao invés de excluir em preconceito (leia mais aqui). Além deste, outros curtas foram o também paulista “Quinze”, de Isis Caroline, e o capixaba “O Tempo e a Falta”, de Claudiana Braga, que, de modo inversamente proporcional e espelhado, tratam respectivamente sobre a juventude e a velhice como estética do coletivo... E, por último, porém não menos importante, o catarinense “Baile”, de Cíntia Domit Bittar, um exercício de estilo com o formato metalinguístico de uma foto 3x4, que é tanto forma quanto conteúdo do filme, de modo a dialogar sobre quem pode ver e quem é visto como força política na contemporaneidade, mas do ponto de vista de uma criança – perpassando, assim, todas as idades e gerações nesta sessão.

A quarta noite competitiva foi uma sessão interligada pela memória ativa (confira mais aqui). Uma memória que só quando exercitada pode refabular o presente pra construir o futuro. E, de todas as noites do festival, foi a mais assumida e integralmente atravessada pelas questões étnico-raciais, agora em foco, e em como esta memória precisa ser acessada para se materializar em estética e linguagem. Filmes como o documentário “Chico Rei Entre Nós”, de Joyce Prado, sobre a importante figura-título da cidade histórica de Ouro Preto (MG), e que já havia ganhado o prêmio de público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo por traduzir a importância da ancestralidade preta como ferramenta decolonial. Um resgate do passado que se imprime nos rituais do presente, assim como os versos finais de Castiel Vitorino Brasileiro no curta “Para Todas as Moças”, onde recita, diante de seu pequeno altar de oração, quais tipos de feitiço são necessários para quebrar as embarcações coloniais que outrora escravizaram todo um povo.

Vale igualmente citar o curta que talvez seja o mais premiado deste segundo semestre, desde sua estréia no Festival de Gramado: o pernambucano “Inabitável”, de Enock Carvalho e Matheus Farias, com tintas transbarrocas e afrofuturistas pra falar sobre a busca de uma filha perdida, que pode acabar sendo correspondida com óvnis e viagens interdimensionais para dar outras possibilidades às personagens transvestigêneres no cinema... Assim como estéticas periféricas ganham ares de fantasia ou distopia também em filmes como o paulista “O Conforto das Ruínas”, de Gabriela Lourenzato, e o carioca “Jorge”, de Jéferson Vasconcelos.

Por fim, a quinta noite competitiva (confira mais aqui) trouxe o grande vencedor pelo júri técnico, como melhor longa-metragem e direção para Carla e Eliane Caffé e Beto Amaral por “Pra Onde Voam as Feiticeiras”. Uma noite de linguagens ensaísticas, de filme-processo, daquele tipo que aquiesce ser cinema e vai mudando de acordo com que se debruça de forma metalinguística sobre seu próprio ato de elaboração. Com roteiro coassinado também pelo elenco, como Ave Terrena, Preta Ferreira, Thata Lopes e Gabriel Lodi, a equipe contou com artistas não binários em performances e manifestos entre o confessional e a criatividade artística, interagindo com as pessoas nas ruas, numa ponte entre ocupação e intervenção.

Uma sessão-chave pra desvelar as cosmologias contra-hegemônicas do cinema, como com o conflito de silêncios entre as diferenças geracionais de pai e filha no alagoano “Como Ficamos da Mesma Altura”, de Laís Santos Araújo. Ou mesmo o exorcismo dos fantasmas brancos da Casa Grande que resiste em nos assombrar e cuja branquitude precisa reconhecer e combater, como no fortíssimo filme carioca “Egum”, de Yuri Costa, inspirado na filosofia de Édouard Glissant, em cuja transcendência afrodiaspórica é uma das tecnologias de sobrevivência no cinema de gênero entre o terror sobrenatural e o afrossurrealismo (leia mais aqui). Sem deixar de mencionar, portanto, os poderosos exercícios de linguagem desconstrutiva contra a dominação eurocêntrica de nossas raízes históricas, como com o curta indígena “O Verbo se Fez Carne”, de Ziel Karapotó, o qual decodifica parábolas bíblicas e evangélicas reocupadas pela espiritualidade dos povos originários, e o também pernambucano “Thinya”, de Lia Letícia, numa impactante fusão experimental de imagens dos europeus colonizadores narradas pela voz indígena da personagem-título, o que reocupa o imaginário opressor para a possibilidade de uma catarse libertadora.

Além das mostras da competição nacional, também houve mostras alternativas, como a Corsária (confira aqui), de linguagens mais experimentais, a Ambiental (confira aqui), que comprovou a necessidade da ficção-científica pra combater os crimes ambientais atuais como a queimada da Amazônia, a Mostra Outros Olhares, Negritude e Mulheres (confira aqui, aqui e aqui), e a de Videoclipes, Terror e Foco Capixaba (confira aqui, aqui e aqui). E várias masterclass gratuitas e registradas produzidas pela cineasta e montadora Natara Ney, inclusive ministrada por este que vos escreve, sobre Crítica de Cinema (aqui), junto a colegas que falaram sobre animação (aqui), assistência de direção (aqui), montagem (aqui), trilha sonora (aqui) e roteiro (aqui). Tudo isto demonstrando o escopo amplo com o qual um Festival de Cinema bastante completo dialoga para corresponder aos anseios populares e absorver as demandas mais urgentes e necessárias. Não é moleza, não.