10º Cinefantasy: Como a fantasia pode nos devolver a realidade do horror atual

Confira entrevista com Eduardo Santana e Monica Trigo. organizadores do festival que estreia neste domingo e vai até o dia 20 de setembro

Cena do filme "O Cemitério das Almas Perdidas" | Divulgação
Escrito en DEBATES el

POR FILIPPO PITANGA*

Em meio ao desafiador ano de 2020, com turbulências políticas e pandemia mundial, começa neste domingo a edição de aniversário do 10º Cinefantasy – International Fantasy Film Festival. Um evento onde a fantasia, a ficção-científica e até o terror a partir da telona podem nos ajudar a lidar com a distopia contemporânea de modo mais eficiente do que a própria realidade que se apresenta. E já começa com estreia mundial no Belas Artes Drive-in do esperado filme “O Cemitério das Almas Perdidas” do cineasta capixaba Rodrigo Aragão, que contará também com retrospectiva de seus longas-metragens na plataforma do Petra Belas Artes à La Carte, quando o Festival passa a ser online entre os dias 07 a 20 de setembro.

Além disso, uma das maiores atrizes do cinema de gênero autoral e independente no Brasil, Gilda Nomacce, será homenageada com o devido reconhecimento. E tudo isso em meio aos 140 filmes em competição, advindos de 30 países, e distribuídos por 13 Mostras bastante diversas e representativas. E para apresentar melhor o Festival aos leitores, trouxemos uma entrevista inédita com os organizadores Eduardo Santana e Monica Trigo:

Sobre o Festival, poderiam revelar um pouco mais aos leitores sobre como foi o processo criativo que deu luz ao CineFantasy em sua gênese, que chega agora à sua 10ª edição comemorativa?

O Cinefantasy surgiu de uma vontade de ver nas telas o que sentia falta como público: de ver produções alternativas de fantasia, ficção-científica, suspense e horror que eram exibidos em festivais como Fantasporto e Sitges na Europa, e não chegavam aqui no Brasil. Então, a partir disso, em parceria com a Virginia Amaral, organizamos as duas primeiras edições como Mostra de Curtas-Metragens Fantásticos. Depois, a Mostra tomou mais um corpo de Festival, com uma programação de longas e curtas-metragens competitivos, mostras paralelas e atividades formativas, já a partir da terceira edição. Eu e a Virgínia seguimos com o Cinefantasy até a sétima edição e, a partir da oitava, entrou a Monica Trigo, que deu um nova roupagem, ou melhor, já que estamos falando do cinema fantástico, um nova capa para este festival.

Olhando para trás, quais foram alguns dos maiores desafios ou pontos mais marcantes destes 10 anos de experiência para chegar na celebração atual?

O maior desafio até hoje é desmitificar o Cinema Fantástico. O grande público ainda não está acostumado com o termo e, na maioria das vezes, ainda associa unicamente a filmes de horror, focando desde em “Sexta-feira 13” e “A Hora do Pesadelo” a filmes com assassinos, sangue e tripas, ou até filmes B, filmes mal feitos, filmes caseiros etc. Portanto, o nosso lema é mostrar que o cinema de gênero também é feito de fantasia, ficção-científica, suspense, western e horror etc. Lembro que sempre falamos de vários filmes… como atualmente temos exemplos híbridos bem-sucedidos e premiados como “Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, “Parasita” de Bong Joon-Ho e “A Forma da Água” de Guillermo del Toro. E isso falando apenas das produções vencedores de Oscar, Cannes e Veneza, mas também destacamos um monte de outros filmes como “O Senhor dos Anéis” de Peter Jackson, “Tubarão” de Steven Spielberg, “Avatar” de James Cameron e muitos outros.

Pontos positivos depois de 10 edições há vários, como a exibição do filme “Colin” de Marc Price numa sala de apenas 100 lugares… A Guarda Civil chegou a ter de intervir, pois havia 200 pessoas do lado de fora querendo assistir ao filme! O Cinefantasy foi o primeiro festival de cinema em São Paulo a exibir um filme do diretor Rodrigo Aragão. Também foi o primeiro festival do país a receber o diretor italiano Ruggero Deodato de “Cannibal Holocaust”. Realizamos em edição anterior ações no Cine Favela em Heliopolis, com presença do animador inglês Robert Morgan. Ano passado, fizemos uma oficina de stop motion na AACD e depois exibimos o filme resultante da oficina no MIS, com a presença dos participantes, e isso foi emocionante.

Se puderem desenvolver um pouco mais sobre um dos grandes diferenciais do Cinefantasy, que é o fato de ele abarcar todo o cinema fantástico, e não apenas nichos isolados… Pode haver diálogo entre as linguagens do cinema de gênero?

Os tentáculos da logo do Cinefantasy tem isso, pois é tudo isso: um festival de horror, fantasia e ficção-científica e o que a sua imaginação desejar. Mas a partir do momento que você começa a ver a programação, o Cinefantasy está acima destas divisões, pois o festival tem animação, documentário e ficção, mas tem igualmente as ramificações com humor, drama, noir, romance, LGBT, mulheres, crianças, adolescentes, causas sociais e ambientais… Porém nunca deixando o gênero fantástico como raiz.

O Brasil está vivendo, mais do que nunca, um momento de transformações, desde uma pandemia mundial a sucessivas crises políticas… Como vocês acham que esta edição do CineFantasy pode dialogar com a realidade atual? O cinema fantástico pode ser político?

Vivemos um mundo fantástico: estamos no momento de um grande vírus que atinge uma multidão mundial… Acho que vocês já viram isso em algum filme de ficção cientifica ou de terror, não é? Pena que essa realidade não é um filme do Cinefantasy, e não acaba depois de 15 minutos como num curta-metragem, e nem depois dos 90 minutos como acontece nos longas-metragens. “O Horror é Real”. E, a partir desta frase, construímos a 10ª edição pensando no desmatamento das florestas, principalmente na nossa grande floresta amazônica. Na sequência, houve incêndios na Califórnia e em vários pontos na Austrália, e tudo isso apenas em janeiro deste ano! Convidamos o artista Jakub Rozalski para fazer a arte deste ano e ele criou “O Demônio de Fogo das Florestas Tropicais”. No começo do ano era esse o Horror, mas o que aconteceu foi apenas um grão de areia no meio do turbilhão de 2020 com a chegada do COVID-19. Para piorar, vivemos numa crise interna com a política nacional. Não temos mais Ministério da Cultura, já tivemos 5 secretários especiais, e ainda não temos um programa nacional de cultura. E o cinema brasileiro respira com resquícios de verbas dos governos passados ou iniciativas isoladas de alguns estados. Não obstante, conseguimos fazer esta edição sem nenhum suporte público, e voltada para o online, respeitando o distanciamento social.

Como funcionam os recortes e temas das diversas Mostras este ano?

O Cinefantasy sempre teve recortes em suas mostras, como: Fantasia, ficção-científica, horror, animação, estudante e amador, sendo as duas últimas só para produções nacionais. A partir da sétima edição apareceu também o recorte para a Espanha, devido ao seu volume de produção para o gênero. Todavia, a virada veio na oitava edição com a criação da Mostra Mulheres Fantásticas, exclusiva para realizadores mulheres. E, no ano passado, estreamos a Mostra Fantástica Diversidade, dedicada a produções que dialogam com o cinema LGBT unido à temática fantástica, no que o Cinefantasy é o primeiro festival do gênero fantástico dedicado à categoria da diversidade. Este ano, implantamos ainda a Mostra Pequenos Fantásticos, dedicada aos filmes para crianças, e a Mostra FantasTeen para o público adolescente.

E o foco em formação? Como vocês veem a evolução tanto de público como de realizadores e parceiros do Festival em termos da importância do Festival na vida das pessoas do meio?

O Cinefantasy desde a terceira edição tem como base a formação, como em cursos, workshops e aulas abertas. Durante essas 10 edições fizemos quase 60 atividades durante os festivais. E, nos meses anteriores ou posteriores, realizamos palestras em universidades e faculdades, sessões comentadas em Fábricas de Cultura e Centros Culturais, sessões ao Ar Livre, Mostras em outros festivais no País e no Exterior.

Diante deste ano tão difícil, em que os Festivais tiveram de se reinventar, como foi esse processo de democratização do acesso pelo online para o Brasil todo? Como vai funcionar?

Realizar um festival no Brasil é muito difícil. Cinema fantástico é duas vezes mais difícil. Agora, imagina num momento de pandemia mundial? Existem dezenas, ou mesma uma centena de festivais acontecendo em formato online. Mas o processo mais difícil é como realizar um festival neste novo formato e de uma maneira segura para os produtores, distribuidores e diretores dos filmes? Começamos a estudar o formato ainda em maio. Pesquisamos fornecedores fora do País, procuramos empresas brasileiras e encontramos a primeira que ofereceu o serviço por R$ 50.000,00 e a segunda como parceira sem custo. Então, fomos estudar as plataformas e segurança de rede, acabamos não fechando com elas, até aparecer o convite do André Sturm para realizar o festival no Petra Belas Artes à La Carte. Já éramos assinantes e temos um respeito ao grupo Belas Artes pela qualidade e competência do seu gestor e da sua equipe, então escolhemos a plataforma. O preço é ótimo, iremos exibir 140 filmes por apenas R$ 9,90. E se fosse só o festival, isso é um custo de R$ 0,07 por filme. No entanto, além dos filmes do Cinefantasy, há centenas de filmes para escolha. O 10º Cinefantasy vai acontecer de uma forma hibrida: iremos abrir no dia 06 de setembro no Belas Artes Drive-in, no Memorial da América Latina em São Paulo, com a première mundial do filme “O Cemitério das Almas Perdidas” do diretor Rodrigo Aragão. E, no dia 07/09, exibiremos online, das 18h às 23h59, o mesmo filme para quem não tem a oportunidade de assistir no drive-in, na plataforma do Petra Belas Artes à La Carte. Fechamos sete sessões de Imprensa Drive-in, uma parceria com o Cineteatro São Luiz, Instituto Dragão do Mar, Secult e Governo do Estado do Ceará com o encerramento no Nordeste com o filme “O Cemitério das Almas Perdidas”. Então, é uma oportunidade da população de Fortaleza e do entorno de também assistir às sessões do Cinefantasy no formato drive-in.

E sobre a FantLatam (Alianza Latinoamericana de Festivales de Cine Fantástico) do qual o Cinefantasy faz parte? Como surgiu a ideia e como pode ajudar no cenário futuro?

A FANTLATAM surgiu como um grito para uma aliança dos festivais de cinema fantástico que existem nas 3 Américas. Desde 2012, o Cinefantasy do Brasil, o Buenos Aires Rojo Sangre da Argentina, o Macabro do México, o Fixion do Chile, o Montevideo Fantástico do Uruguai e o Zinema Zombie da Colômbia vêm discutindo uma forma de parceria entre os festivais… Mas essa discussão foi encerrada, e só em 2019 foi retomada com a Monica Trigo. Ela foi a peça fundamental para o lançamento oficial no 9º Cinefantasy desta aliança que vem para o intercâmbio de programação, de experiência, e pra fortalecer as produções realizadas no continente americano. Hoje são 13 festivais e cada mês cresce o interesse de outros para participar. Já estamos trocando contatos, filmes, legendas e conhecimentos. Todos os meses há uma reunião com os diretores dos festivais. E, no dia 6 de julho, elegemos a primeira presidente da aliança, a gestora cultural e diretora do Cinefantasy, Monica Trigo, como a voz das Américas do cinema fantástico. O próximo passo é eleger o melhor longa-metragem e o melhor curta-metragem com o prêmio FANTLATAM 2020.

*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema