Nem só de dízimos vivem as igrejas evangélicas – Por Vagner Marques

Precisamos dialogar com os evangélicos, compreender suas demandas, entender sua fé, ouvir sobre seu imaginário, conhecer sua realidade e aprender sobre a importância da igreja para o seu universo de fé.

Foto: Prefeitura Municipal de Caibaté
Escrito en DEBATES el

Por Vagner Marques *

Ontem (08) o Supremo Tribunal Federal decidiu que estados e municípios podem proibir a realização de celebrações religiosas com o objetivo de conter o avanço do contágio da Covid-19.

A decisão do STF ocorreu logo após o ministro Kássio Nunes Marques ter liberado no último sábado (03) a realização de cultos e missas em todo o país, após atender ao pedido protocolado pela Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure).

A decisão de Nunes Marques pegou muitos de surpresa e setores do campo religioso, com destaque para elementos do universo evangélico, comemoraram a liberação dos cultos. Entretanto, dois dias depois, o ministro Gilmar Mendes concedeu liminar autorizando o Estado de São Paulo a proibir celebrações durante a pandemia e o país testemunhou um caos jurídico, que terminou com a decisão em maioria pelo plenário do STF que prefeitos e governadores podem proibir a realização de cultos, missas e outras atividades religiosas.

Mas nem tudo ficou resolvido. Na vida vivida houve muita expectativa sobre a liberação ou proibição das atividades religiosas e grandes debates tomaram as redes sociais.

Dos setores interessados na liberação dos cultos e missas, parte do campo evangélico instrumentalizou a disputa jurídica na narrativa de perseguição com a campanha A igreja no banco dos réus, queganhou força na internet. Por outro lado, parte do campo progressista realizou fortes movimentos afirmando que o interesse dos pastores pelas igrejas abertas era tão somente o recebimento de dízimos e ofertas.

No meio disso, muitos pastores mantiveram suas igrejas fechadas, mesmo com a decisão de Nunes Marques, outros deixaram de ministrar sobre dízimos e ofertas desde o inicio da pandemia, alguns aproveitam a decisão jurídica e realizaram cultos já no dia seguinte e muitos fiéis procuram suas igrejas para o encontro íntimo com o sagrado.

O campo evangélico é profundamente plural e por mais que isso seja dito, setores da intelectualidade e do campo progressista insistem em singularizá-lo. Nem só de Malafaia, Macedo, Waldemiro e RR vive o campo evangélico. Estes na verdade representam um setor muito particular de um universo tão polissêmico.

O campo progressista instrumentalizou a decisão jurídica e o apelo por igrejas abertas única e exclusivamente com ideia de que pastores têm interesses somente na arrecadação de dízimos e ofertas. Pode ser que isso ocorra em determinados locais, mas é justamente aqui que vemos uma enorme dificuldade de compreensão das periferias urbanas e das transformações no campo religioso brasileiro, com destaque para o crescimento e hegemonia do pentecostalismo.

Com ou sem a decisão do STF, nas periferias,os bares permanecem abertos, atividades de futebol de várzea resistem, o movimento nas feiras é intenso, conforme sinalizou Racionais MC’s quando diz “gritaria na feira, vamos chegando, eu gosto disso mais calor humano”. Adegas, tabacarias, pequenos comércios, igrejas, academias e uma infinidade de atividades procuram manter suas funções no momento mais crítico da pandemia.

Sabemos que atravessamos um momento único na História de nosso país, onde, lamentavelmente, quase 350 mil vidas foram perdidas. São notórios os riscos de aglomeração em igrejas ou festas clandestinas.

O debate que penso ser necessário e urgente é ultrapassar o imaginário de que os pastores que defendem as igrejas abertas estão preocupados tão somente no espólio econômico de seus fiéis. Sustentar essa narrativa é perder mais uma oportunidade de conhecer as dinâmicas das periferias e o sentido simbólico das igrejas menores, das quebradas de fé.

Acompanho a trajetória de pastores que com suas igrejas fechadas organizam arrecadação de alimentos para membros que carecem do pão nosso de cada dia. Sem cultos, as igrejas transformaram-se em drive thru de oração, entrega de alimentos, espaços para aconselhamento, orações e muitas reformas.

No primeiro dia após a liberação das atividades religiosas determinada por Nunes Marques, fui a uma igreja pentecostal em Ferraz de Vasconcelos, na condição de pesquisador e também de fiel. Igreja média de periferia, muitas cadeiras vazias, uma média de 40 pessoas, todas de máscaras, temperatura aferida na entrada, álcool em gel, cadeiras separadas e todo protocolo necessário.

Um culto ao caráter do rito evangélico, oração de início, músicas e em seguida o espaço para a ministração do pastor. Acompanhei o culto inteiro e nesta igreja não se falou de dízimos e ofertas por uma só vez. Entretanto, após o culto, alguns membros demonstraram inquietação de postagens na internet que justificavam que os pastores queriam as igrejas abertas apenas para arrecadação de dinheiro. Eles se sentiram ofendidos.

Perguntei a um membro da igreja por que ele decidiu ir ao culto? “Professor, estou desempregado, vim a pé da minha casa, não tenho internet para assistir o culto online e vim com fé orar para Deus abrir uma porta de emprego. Tô morrendo de medo da pandemia, irmão, sabe professor, mas também tô morrendo de medo de faltar um rango em minha casa, eu tenho criança pequena, por isso vim orar para Deus abençoar com um emprego nessa semana que vai entrar”. Depois de descrever sua condição ao pastor, ele voltou para casa sem que pedissem seu dinheiro em dízimo e/ou oferta. Sua fé foi renovada e um kit de alimentos foi cedido para passar a semana.

Afirmar que pastores estão somente interessados nos dízimos ofende esse indivíduo e tantos outros semelhantes. O campo é complexo e parece que singularizar é mais fácil. Há uma dificuldade de diálogo entre setores progressistas com as periferias urbanas e se as falas não forem ajustadas, as distâncias tendem a aumentar cada vez mais.

A dinâmica das periferias urbanas do Brasil mudou significativamente nas últimas três décadas. hoje, cada vez mais presente no tecido social das periferias, o pentecostalismo é uma potência em capacidade de agregar sentidos. A ideia de fieis passivos e pastores charlatões permeia o imaginário daqueles que gostam desse tipo de narrativa, mas estão distantes do campo, onde se identificam indivíduos ativos e potenciais no cotidiano.

Desconhecer a pluralidade do pentecostalismo, é antes de tudo, desconhecer a pluralidade do próprio Brasil. Mas foi na década de 1990 que testemunhamos o exponencial crescimento evangélico e a significativa transformação no campo religioso brasileiro.

Nas últimas três décadas, pesquisas diversas procuram identificar as causalidades desse crescimento e a consequente reconfiguração do universo da fé dos brasileiros. Em 1991, os evangélicos constituíam 9% da população nacional. Chegaram a 15% em 2000 e 22% em 2010. Pesquisas recentes apontam que hoje representam entre 29% a 33% da população, ou seja, mais de 60 milhões de brasileiros. Só em Ferraz de Vasconcelos, extremo leste de São Paulo, 49,8% da população se declarou evangélica em pesquisa que realizei em 2017.

Esses milhões de brasileiros não são orientados por um ou outro indivíduo, eles compõem os mais diversos perfis de igrejas e teologias. Singularizá-los é, antes de tudo, um preconceito que não podemos incorrer.

Precisamos dialogar com os evangélicos, compreender suas demandas, entender sua fé, ouvir sobre seu imaginário, conhecer sua realidade e aprender sobre a importância da igreja para o seu universo de fé. Esse é o caminho.

Uniformizá-los, generalizá-los e singularizá-los é aumentar a distância com os evangélicos, com as mulheres, com os pobres e com as periferias urbanas. Cabe a tarefa do diálogo e não mais de adjetivação.

Instagram: @profvagnermarques

*Vagner Aparecido Marques é professor universitário, historiador, doutor em História Social e mestre em Ciências da Religião, ambos pela PUC-SP.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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