Luta antimanicomial e os desafios do cenário de retrocessos com Bolsonaro – Por Mário Maurici

É preciso que estejamos atentos aos ataques promovidos pelo governo federal e seus dirigentes no Ministério da Saúde, que privilegiam o retorno da política defasada de internações, o modelo psiquiátrico hospitalocêntrico

Foto: Arquivo Nacional
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Por Mário Maurici *

Neste 18 de maio, duas efemérides marcam a luta pelo tratamento mais humano aos pacientes com doenças mentais no país. Uma é a celebração do Dia Nacional de Luta Antimanicomial. A outra é a inauguração, em 1898, da “Colônia Agrícola de Alienados”, posteriormente Hospital Psiquiátrico do Juquery, no município de Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo. Os dois acontecimentos são simbólicos no que se refere aos avanços da Política Nacional de Saúde Mental, mas à luz dos tempos atuais a data precisa ser considerada com apreensão diante dos retrocessos sinalizados pelo (des)governo de Jair Bolsonaro.

O Dia Nacional da Luta Antimanicomial marca o movimento, iniciado na década de 70, contra os abusos e violação aos direitos humanos sofridos que ocorriam nos manicômios espalhados pelo país. O 18 de maio foi escolhido por sediar o encontro, em 1987, na cidade de Bauru (SP), quando mais de 350 profissionais da área lançaram um manifesto que possibilitou mudanças significativas na assistência da saúde mental. A lembrança dos mais de 120 anos da inauguração do Hospital Psiquiátrico do Juquery, por sua vez, resgata um momento fundamental da história da saúde pública no Brasil. Fundado pelo médico Francisco Franco da Rocha, o Juquery chegou a registrar cerca de 16 mil pacientes, sendo o maior do país.

O registro das duas ocorrências em 18 de maio é mais do que uma coincidência histórica, mas são eventos que se completam e complementam. Isso porque o chamado “Manifesto de Bauru” pregou o fim das instituições manicomiais e o desenvolvimento de serviços de saúde “abertos”. Ou seja, tratamentos mais humanizados, voltados para o bem-estar e dignidade dos pacientes. O país atravessava seus momentos iniciais de redemocratização e a luta pela extinção dos hospícios passou a ser vista como uma consequência do novo período político do país. Parte da sociedade postou-se contrária aos procedimentos muitas vezes violentos, tanto física quanto simbolicamente, dados aos internos das instituições de tratamento das doenças mentais. Sob uma aparência de proteção, o que se tinha eram iniciativas voltadas ao isolamento e invisibilidade dos indivíduos acometidos de tais problemas.

Como maior do país, o Hospital Psiquiátrico do Juquery, concebido inicialmente pelo doutor Franco da Rocha como um local aprazível, com amplos espaços verdes, para tratamento adequado e humano aos pacientes, ganhou fama justamente pelo contrário com o passar dos anos. Pelas dimensões de suas dependências, o elevado número de internos e as denúncias de práticas violentas e maus tratos, o Juquery ficou marcado como um “depósito” de loucos. Aliás, um temor – e um alerta – manifestado ainda na década de 20 do século passado pelo próprio fundador do lugar ao governador à época.

Foi nos anos 30, com o Estado Novo de Getúlio Vargas e seu interventor Adhemar de Barros, que o Juquery começa sua degradação. A partir de então, Adhemar com uma política agressiva de internação iniciou a superlotação do complexo hospitalar num processo contínuo até os anos 70 (não sem razão em meio à Ditadura Militar), quando o Juquery torna-se uma referência negativa no tratamento psiquiátrico, acumulando registros de maus tratos e falta de humanidade nos cuidados aos pacientes. Muitos praticamente abandonados nos prédios do complexo hospitalar.

No entanto, é importante registrar que antes de sua decadência, o complexo do Juquery foi um importante e pioneiro centro de tratamento e pesquisa dos doentes mentais. Um de seus diretores, Pacheco e Silva, por exemplo, chegou a enviar resultados de suas pesquisas a Sigmund Freud, o país da psicanálise (que registrou e agradeceu o recebimento do material). Também é digno de nota o trabalho desbravador no Brasil de Osório César, com os primeiros passos na arte como terapêutica e que criou a escola livre de artes no local. Atualmente, Osório César batiza um museu, que também faz aniversário hoje, no complexo do Juquery, com cerca de oito mil criações artísticas feitas pelos internos.

O Juquery, com seus 600 mil metros quadrados e edificações desenhadas pelo arquiteto Ramos de Azevedo, foi desativado em 2001, com a lei federal 10.216, conhecida como lei da reforma psiquiátrica. A nova legislação regulamentou os direitos das pessoas com transtornos mentais, privilegiando tratamentos em bases comunitárias, direitos e proteção. Os CAPS – Centros de Atenção Psicossocial são oriundos dessa lei.

Em 1º de abril, os últimos nove moradores remanescentes do Complexo Hospitalar de Franco da Rocha deixaram o local, indo para o Centro Pioneiro de Atenção Psicossocial Arquiteto Januário José Ezemplari, a Fazenda São Roque. Tombado pelo Condephat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico, Turístico do Estado de São Paulo, boa parte de sua área é hoje o Parque Estadual do Juquery, único remanescente de cerrado na região metropolitana de São Paulo. Algumas edificações foram entregues para a Prefeitura de Franco da Rocha que deve transformá-los em equipamentos educacionais e de cultura. Mas mantém fiel às origens de cuidados à saúde abrigando o Hospital Estadual de Franco da Rocha, que também atende a população de Caieiras, Mairiporã, Francisco Morato e Cajamar, além de uma unidade do Caism – Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental.

Como prefeito de Franco da Rocha (1993 a 1996) sempre defendi a humanização no tratamento dos doentes, pautando minha gestão sob tal orientação. Assim como as duas administrações de meu filho, Kiko (2013-2020), à frente da prefeitura municipal. Obviamente, com posicionamentos que vão ao encontro das lideranças e autoridades na luta antimanicomial.

No entanto, é preciso que estejamos atentos aos ataques promovidos pelo atual governo federal e seus dirigentes no Ministério da Saúde, que privilegiam o retorno a uma política defasada de internações, o chamado modelo psiquiátrico hospitalocêntrico, asilar e centralizador. Algo que, na prática, entendemos interferir diretamente na dignidade da pessoa humana pois limita os cuidados em liberdade aos doentes, além de restringir a oferta de cuidados e tratamentos. Isso em prejuízo a um sistema de saúde mental estruturado ao longo dos últimos anos e que se mostra correto. Portanto, neste 18 de maio é preciso estar vigilante e combater toda e qualquer intenção de retrocesso no delicado (e imprescindível para toda a sociedade), campo da saúde mental. Sob pena de retornamos a um triste passado recente, que em nada deixou saudades ao Brasil.

*Maurici de Morais é deputado estadual pelo PT-SP, foi vereador e prefeito de Franco da Rocha, presidente da Ceagesp, vice-presidente da EBC-Empresa Brasil de Comunicação - e secretário de governo e de comunicação de Santo André.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.