Como o desmonte das políticas ambientais agrava o racismo no Brasil? – Por Áurea Carolina e Mônica Francisco

Não se trata apenas de uma demanda por defesa civil. O que os episódios mais recentes confirmam é que precisamos transformar como nos relacionamos com o meio ambiente e enfrentar as brechas na legislação ambiental que abrem espaço ao racismo ambiental

Foto: As deputadas Mônica Francisco e Áurea Carolina (Assessoria de Imprensa)
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Por Áurea Carolina e Mônica Francisco *

“(...) Hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda”.

Ailton Krenak

Para quem enfrenta cotidianamente os impactos sociais e ambientais provocados por atividades predatórias, como a mineração, o agronegócio e o garimpo ilegal, não restam dúvidas de que a exploração do meio ambiente está diretamente ligada aos desastres ambientais que acompanhamos na virada deste ano em todo país. As proporções que tais eventos vêm tomando tornam ainda mais evidente o estado de absoluta emergência climática e ambiental que atinge, sobretudo, as populações em situação de maior vulnerabilidade do mundo. No Brasil, sabemos que os principais atingidos têm cor. São os povos pretos, maioria nas favelas e periferias; são povos e comunidades tradicionais, que lutam contra o avanço de atividades industriais e extrativistas em territórios quilombolas, ribeirinhos e indígenas, e contra o desmonte de políticas de proteção aos seus direitos. Precisamos agir agora para enfrentar essas violações e impedir que tragédias anunciadas virem manchete ano após ano.

Lembremos aqui apenas de alguns dos casos emblemáticos que marcaram o final de 2021 e início de 2022. No sul da Bahia, o impacto foi repentino: em 20 de dezembro, o Quilombo D’Oiti, em Itacaré, fazia um convite ao público para participar de atividades da comunidade. A proposta era que cada visitante pescasse o próprio alimento. Quatro dias depois, as mesmas redes sociais foram usadas, às vésperas das comemorações natalinas, para pedir auxílio às famílias desalojadas na comunidade devido às fortes chuvas que invadiram a região e provocaram danos imensuráveis. A partir daí, os anúncios de alagamentos, enchentes e desabrigados se deram por onze estados brasileiros.

Em janeiro, Minas Gerais entrou em estado de alerta máximo, com dezenas de cidades aterrorizadas pelo risco de rompimento de barragens de mineração, deslizamentos de terra, a tragédia que se abateu sobre Capitólio, entre outros episódios de um cenário de catástrofe. Sobretudo em pequenas comunidades rurais, a população tem sofrido com a obstrução de vias de acesso e a falta de energia elétrica e água potável, provocadas por deslizamentos e inundações de empreendimentos minerários. Em Brumadinho, as comunidades de Monte Cristo e Tejuco ficaram ilhadas por dias após o estouro de um dique da mineradora Tejucana, sem que a Defesa Civil conseguisse acessar o local. Com a parte baixa completamente alagada, moradores do distrito de Piedade do Paraopeba denunciam que a Vallourec teria aberto o vertedouro de uma de suas barragens sem qualquer aviso prévio.

Chamados de “naturais”, como se esses eventos fossem frutos do acaso, seguimos sem políticas efetivas para evitar e prevenir esses desastres. Mais do que nunca, eventos extremos como os que vemos agora serão recorrentes. Precisamos reafirmar a responsabilidade da ação humana nesta devastação e agir para propor medidas de proteção sociais e ambientais. O que vivemos, no entanto, é o extremo oposto.

O desmonte das políticas de meio ambiente tem o objetivo nítido de promover atividades de grande impacto ambiental, como o agronegócio e a mineração. Basta olhar, de novo, para o que acontece no sul e extremo sul da Bahia, com a devastação ambiental e perda da Mata Atlântica, o bioma mais ameaçado do Brasil. Nessa região, onde há a maior biodiversidade de espécies de árvores do planeta, o que tem acontecido é a substituição de produções agrícolas como o cacau, que mantinham a floresta em pé, pela monocultura do eucalipto e produção de carne. No oeste da Bahia, acontece o mesmo na região do Cerrado, onde há a expansão da fronteira agrícola da soja. Com a expulsão das pessoas dessa região, o deserto de terra vem devastando, além do território baiano, o Maranhão, Tocantins e o Piauí, área conhecida como Matopiba, que é a última fronteira da expansão do agronegócio sobre o Cerrado.

O governo Bolsonaro já deixou óbvio que não possui compromisso algum com a política ambiental e acumula retrocessos nessa área. O próprio Ministro do Meio Ambiente, Joaquim Álvaro Pereira Leite, ex-assessor de ruralistas, é ligado à disputa de terras indígenas. A gestão bolsonarista desmantelou órgãos ambientais, reduziu a composição do Conselho do Meio Ambiente, atribuiu o pior orçamento ao Ministério do Meio Ambiente em mais de uma década e tentou numerosas vezes passar a boiada por cima de áreas de proteção ambiental.

Na Câmara dos Deputados, ainda nos últimos dias de 2021, foi aprovado o projeto que permite o desmatamento em margens de rios nas zonas urbanas e a regularização de imóveis construídos em Áreas de Preservação Permanente (APPs), prontamente sancionado por Jair Bolsonaro. Por pouco, não foi votada uma alteração do Código da Mineração que legitimava a extração minerária como atividade de interesse público, passando por cima da demarcação de terras indígenas e quilombolas e de assentamentos da Reforma Agrária. São mais de cinquenta atos normativos, tanto do Ministério quanto de outros órgãos do governo federal, que enfraqueceram a gestão ambiental. Os desmatadores têm sido estimulados pela redução da fiscalização, escancarada pela queda de 70% na aplicação de multas ambientais entre março e agosto de 2020.

Neste contexto, o racismo ambiental (termo/conceito cunhado pelo sociólogo Robert Bullard) opera na escolha de quem irá suportar os riscos da degradação, interferindo na localização dos empreendimentos e na escolha das tecnologias a serem utilizadas. Como resultado, fica evidente quais territórios sofrem com queimadas, grilagem, rompimentos e demais desastres. Paralela às flexibilizações, temos a relativização da vida. O ano de 2022 mal começou e já temos mortes no Pará e no Maranhão de defensores da pauta ambiental.

É dentro dessa conjuntura que precisamos apresentar soluções que recuperem áreas degradadas e efetivem os processos de saneamento com a possibilidade de uma política de geração de emprego com baixo impacto ambiental. Para combater o agronegócio, por exemplo, só há um caminho, que é a via agroecológica, enfrentando a monocultura e fortalecendo os pequenos e médios agricultores, numa política de produção sem veneno, voltada para a segurança alimentar. É necessária a proteção das áreas alagadas para que sirvam como bacias naturais de dispersão de enchentes, e ainda colocar em prática uma rigorosa fiscalização para evitar construções em áreas alagáveis ou instáveis[a][b][c]. É urgente que as licenças de operação das mineradoras sejam revistas e que as atividades em áreas sob risco de rompimento ou contaminação dos rios, para dizer apenas de medidas emergenciais diante do escândalo que é a atividade minerária neste país. 

Não se trata apenas de uma demanda por defesa civil. O que os episódios mais recentes confirmam é que precisamos transformar como nos relacionamos com o meio ambiente e enfrentar as brechas na legislação ambiental que abrem espaço ao racismo ambiental [1].

A nossa constituição institucionaliza um Estado de Direito ambiental democrático e participativo, estabelecendo o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e a sadia qualidade de vida. Mas sabemos que as questões de raça, gênero e classe influenciam profundamente os usos, o acesso de direitos e as possibilidades de vida. As formas de apropriação do ambiente são questões fundantes do capitalismo – e é ao capitalismo que mais interessa classificar os desastres ambientais como aleatórios e “naturais”. Esses eventos não existem em um vácuo. São, na verdade, construídos socialmente através de processos que se estruturam na dinâmica do desenvolvimento econômico e social. Além de problematizar a disputa pelo direito, é necessário questionar a existência de sujeitos a quem não é permitido ser sujeito de direitos. Precisamos questionar a própria noção, por vezes colonizadora, de vulnerabilidade, que transforma populações com relações diferenciadas com a natureza (povos tradicionais, ribeirinhos, etc) em povos a serem tutelados e dependentes das dinâmicas de expropriação.

Não discutir junto aos povos originários, comunidades tradicionais e favelados a questão climática e não efetivar suas proposições em políticas públicas é colocar em curso no Brasil um novo colonialismo, é seguir exportando nossas riquezas enquanto a população padece do mínimo. O que vimos nessas chuvas, que aconteceram de forma ainda mais drástica na Bahia e em Minas Gerais, e que podem atingir também o Rio de Janeiro, é que o orçamento para essas políticas é ínfimo ou nenhum.

No Rio de Janeiro, a justiça climática veio como prioridade dentro da Mandata Quilombo Mônica Francisco, onde emendamos o Orçamento para 2022 com recursos para a implantação da Política Estadual de Combate ao Racismo Ambiental, destinando mais de 120 mil reais aos Programas de Preservação e Conservação Ambiental, e Saneamento Ambiental e Resíduos Sólidos.

Em Minas Gerais, o mandato da deputada federal Áurea Carolina tem acompanhado de perto a luta da população ameaçada por barragens de mineração, acionando o governo do estado e os órgãos competentes por providências imediatas para garantir a segurança das comunidades. Além disso, tem pressionado pela aprovação de um novo marco regulatório para a mineração, para garantir direitos às famílias atingidas e tornar mais rigorosos os mecanismos de responsabilização das empresas que vêm devastando nossos ecossistemas.

[1] O termo racismo ambiental data dos anos 1980, a partir dos estudos do Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., e do sociólogo Robert Bullard. Ambos, a partir de processos paralelos, concluíram que os usos, riscos e danos ambientais são distribuídos de formas diversas entre os grupos étnicos.

*Aurea Carolina é deputada federal (PSOL-MG) e Mônica Francisco é deputada estadual no Rio de Janeiro (PSOL).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.