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Ataques aos nordestinos: da construção do imaginário subalternizado à tipificação do crime de racismo – Por Ana Carolina Westrup

Recente entendimento do STJ pode contribuir para coibir discursos de ódio que têm se ampliado eleição após eleição

Créditos: Henrique Rodrigues/Revista Fórum
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“Ebola, olha com carinho para o povo do nordeste”

“E aí tudo graças aos flagelados nordestinos que vivem do bolsa esmola”.

As mensagens acima expressam a amálgama de discursos de ódio que atacam o Nordeste e os(as) nordestinos(as), mas também representam um divisor de águas no enfrentamento jurídico à xenofobia, que tem se acentuado nos últimos processos eleitorais no país.

No último dia 22 de novembro, o plenário do Supremo Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial 1569.850 que versava, exatamente, sobre essas mensagens aqui mencionadas.  O Ministro Sebastião Reis Junior, relator do recurso, em seu voto, afirmou que o conteúdo publicado no Facebook “assenta suposta inferioridade do grupo ofendido, as pessoas oriundas do nordeste do Brasil, ao considerar que essas pessoas deveriam ser encaradas com carinho pelo vírus Ebola, externado desprezo por esse grupo”.

Com esse entendimento, o relator proferiu seu voto evidenciando o discurso de ódio presente nas mensagens e os potenciais lesivos esse tipo de conteúdo causa à coletividade, tipificando tal conduta como crime de racismo, pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro. Corroborando com a sua tese, a Sexta Turma do STJ entendeu ser preciso que o Estado responda a esse tipo de crime no sentido de dissuadir a sua recorrente prática.

Eleições e ataques

A realidade de ataques à população nordestina, sobretudo nos processos eleitorais, está se tornando um fenômeno presente e insistente, com agravamento nos três pleitos presidenciais mais recentes.

Na eleição presidencial de 2014, os ataques ao Nordeste, em virtude do resultado eleitoral que confirmou uma expressiva vitória de Dilma Rousseff (PT) na região, ensejou uma série de mensagens pejorativas e preconceituosas. Em virtude da quantidade de discursos de ódio proferidos contra a população nordestina, a OAB – BA criou uma Central de Denuncias que, em menos de 24 horas, já havia recebido mais de 90 denúncias de mensagens como “nordestino não é gente”, “Bin Laden, mira a bomba no nordeste”, “não gosto dessa raça”, entre outras.

Na disputa seguinte, o contexto não foi diferente. A Central Nacional de Denúncias de Violação de Direitos Humanos, iniciativa desenvolvida pela Safernet - organização que estabelece uma abordagem intersetorial sobre os Direitos Humanos no ambiente digital - recebeu no mês de outubro de 2018, mais de 388  denúncias  de discurso de ódio contra os nordestinos, também como consequência dos 69,7% dos votos ao candidato Fernando Haddad (PT) na região. Em 2022, já no resultado do 1º turno do pleito, a Central de Denúncias  da Safernet  havia computado mais de 340 denúncias de xenofobia contra nordestinos.

Para o advogado Antônio Rodrigo Machado, professor no Instituto de Direito Publico (IDP) e doutorando em Direito Constitucional, a decisão do Superior Tribunal de Justiça representa um substancial avanço no combate a essas condutas.

“A Lei 7.716/1989, em seu art. 20, define que é crime de preconceito, “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Aumenta-se a pena se o delito é praticado por meios de comunicação social. No caso discutido, a ofensa não foi contra uma pessoa especificamente, mas sim contra a coletividade em razão da sua origem territorial, os nordestinos” explica o jurista.

O advogado compreende que a decisão do Ministro Sebastião, acompanhando pela maioria da Sexta Turma do STJ, é uma resposta fundamental para o crescente cenário xenófobo contra a população nordestina. “A aplicação da lei na questão específica dos ataques ao povo nordestino é algo muito positivo, já que se trata de uma ofensa que tem se tornado algo corriqueira. Este crime aumenta quando há divergências eleitorais em que o Nordeste faz uma opção distinta das escolhas dos estados do restante do país.  Na última eleição presidencial, por exemplo, o Nordeste garantiu uma forte votação ao candidato Luís Inácio Lula da Silva (PT), mas o mesmo candidato foi o mais votado na cidade de São Paulo, a maior do Sudeste e uma das maiores do mundo. A verdade é que são nesses momentos que o preconceito se apresenta”, ressalta.

Imaginários da racialização

Mas quais seriam as origens históricas deste preconceito em relação à população nordestina? Para o professor da Universidade Federal de Campina Grande e pesquisador dos laboratórios de Estudos Rurais e Ambientais (LERA-UFCG) e de Estudos de Poder e Política (LEPP/UFS), Valdenio Freitas Meneses, essa pergunta pode ser explicada como fruto de um processo histórico, a partir da incidência das elites regionais e o uso da equação “problemas da seca/ pobreza/fome e violência” para obtenção de recursos públicos e benesses pessoais. 

“As elites foram construindo sua identidade reclamando um lugar do Nordeste no imaginário de nação: mobilizando sempre imagens, argumentos que falam das secas, terra, poder. Temos as imagens de retirantes da seca de 1877 que chegam à imprensa do Rio e São Paulo, ou da violência de Canudos, do cangaço, as brigas de honra das oligarquias. Temos da engenharia das grandes obras das secas até as mais recentes políticas de Transposição do Rio São Francisco ou dos projetos governamentais de cisternas e políticas de combate à fome”, contextualiza o professor.

Entretanto, em que pese o uso político dos problemas sociais do Nordeste e os discursos engajados a partir da ideia de combate à seca, a fome e à pobreza na região, esses mesmos grupos políticos submeteram, historicamente, a população nordestina, e, sobretudo, os trabalhadores, à condição de servidão e subalternidade coronelística.

“As elites pecuaristas passam o século XX a pedir recursos para lidar com as secas argumentando evitar crise econômica, fome ou violência dos pobres. Mas também mantinham relações de trabalho/moradia/sujeição/endividamento e dominação com famílias de trabalhadores rurais nas suas fazendas. Atualmente muitos são contra políticas como seguro safra ou programas de transferência de renda pois fazem "os pobres não trabalharem". Não é à toa também que segmentos dessas elites são contra qualquer projeto de aprofundar a Constituição Federal 1988 que efetivamente mude as relações de pobreza e desigualdade que eram agravadas nas secas e levantes violentos no Nordeste”, avalia.

Há, portanto, por um lado, a construção histórica de uma imagem pejorativa e estereotipada do Nordeste para benefícios políticos e econômicos por parte das elites regionais, e, por outro, a manutenção das desigualdades sociais, protagonizadas por esses mesmos grupos dirigentes.  O fato é que esse imaginário coletivo, forjado em diferentes momentos, é ativado em forma de discurso de ódio e xenofobia em episódios políticos, e também no próprio cotidiano, como forma de preconceito e inferiorização.

Numa outra perspectiva sobre este fenômeno, a jornalista, professora e pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (NDC/UFPE), Fabiana Moraes, expõe o fenômeno da racialização presente na construção desse imaginário coletivo contra o Nordeste.

Em matéria publicada no The Intercept, utilizando como referencial a tese “A Racialização dos Nordestinos em São Paulo: representações na Imprensa da década de 1950 e relatos de migrantes idosos” do pesquisador, professor e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pedro Vítor Gadelha Mendes, Fabiana evidencia os pontos em comum entre a população nordestina e negra.

“A relação cor, origem geográfica, pobreza e grau de instrução, com diferentes combinações, foi percebida como perversa especialmente entre negros e/ou nordestinos desempregados já na São Paulo também da década de 1950 (...) O Nordeste dos “flagelados” seguindo para o Sudeste é o mesmo Nordeste para onde foram enviados os maiores contingentes de populações trazidas à força da África. Séculos depois, os milhares de escravizados nos engenhos e fazendas nordestinas foram, com o declínio da economia açucareira, vendidos para as plantações de café de São Paulo”, indica.

Para a jornalista “a cor e a origem nordestina, presente nas descrições e a exploração do trabalho barato não se dão à toa”. Há, portanto, um interseccionalidade entre a população nordestina e a população negra, seja do ponto de vista da própria formação da população e a nossa herança escravagista, seja pela própria representação como grupo inferior, evidenciado em discursos racistas que apontam sempre as mesmas características de subalternidade dos sujeitos e subdesenvolvimento comparado às outras regiões do país.

Em resposta a essa combinação de preconceitos, ódio e hostilidade, o aspecto ligado à racialização ganha força quando fazemos as intersecções necessárias – de gênero, raça e classe - para analisar a problemática.  Nesse sentido, a recente decisão do STJ adquire uma relevância fundamental para este entendimento e, sobretudo, para se criar respostas efetivas que possam coibir o avanço da xenofobia histórica, cada vez mais presente na agenda política brasileira e no cotidiano da população nordestina.

* Esta matéria integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

**Ana Carolina Westrup é doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe, pesquisadora do Laboratório de Estudos do Poder e da Política (LEPP-UFS) e bolsista CNPq em Tecnologias Sociais. Integra o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

***Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.