LITERATURA

O Chão de Guimarães Rosa – Por Tanael Cesar Cotrim

Começar a ler Guimarães Rosa ofereceu-se como desafio. Ultrapassar as primeiras páginas resultou em exercício disciplinado diário. Lida difícil. Perscrutar caminhos de inteligibilidade. A chamada "Cosmogonia Rosiana" exige determinação

Imagens do livro O Rumo do Rosa na Rota de Zito, de Tanael Cesar Cotrim.Créditos: Divulgação
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“Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se.” Desenredo, de Tutaméia

Brasil Real. Brasil Simbólico. Brasil Genético. Os caminhos cruzados da vida. Começar a ler Guimarães Rosa ofereceu-se como desafio. Ultrapassar as primeiras páginas resultou em exercício disciplinado diário. Lida difícil. Perscrutar caminhos de inteligibilidade. A chamada "Cosmogonia Rosiana" exige determinação. Até o alumbramento com a linguagem moto-contínuo, uma nascente a jorrar perenemente a água de um caudaloso e profundo rio, permeado de seres enigmáticos e reais. No Itamaraty vagava a ideia de um diplomata com hábito desarrazoado para escritor: a pesquisa. Confirmada por Vinicius de Moraes através de Antonio Candido. Um sujeito quieto, tímido e estranho andava com listas de plantas, lugares e bichos de Minas Gerais. Resolve experienciar os Geraes e parte para uma expedição de boiadeiros. É recebido por Zito. E a vida muda, sub-repticiamente, para Rosa, Zito e a literatura.

Zito é um personagem do conto A Partida do Audaz Navegante, do livro Primeiras Estórias. Mas Zito é real também. E afirmo, pois o entrevistei para o livro O Rumo do Rosa na Rota de Zito. Num ensolarado azul de um sábado de julho de 2001, em Três Marias, esmiuçou Rosa nos 11 dias de contato entre a Fazenda Sirga, em Três Marias e a Fazenda São Francisco, em Araçaí , na vanguarda de uma comitiva de boiada, em Maio de 1952, há 70 anos. Guiou a expedição e o escritor, escanchado na mula Balalaika, com um caderno e lápis apontado nos dois lados para anotações. “Eles chegaram de noite, num jipe. Aí ele chegou e eu perguntei - O senhor que é o doutor Rosa? Ele respondeu - Doutor não, vaqueiro Rosa. Não podia chamar de doutor na viagem não. - Doutor é no Rio, aqui não, aqui é vaqueiro Rosa.”

A Revista O Cruzeiro registrou a chegada em famosa reportagem. A viagem contribuiu para a elaboração de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Se o afeto extraído das histórias remetiam-me, após o fascínio da linguagem, às origens familiares sertanejas, encontrar Zito escancarou uma literatura criada do chão, do pó das sendas, das pedras de Maquiné, do sal do cocho, das estrelas tão alumiadas somente ali. O mundo recriado em exercício sublime de criação. Catalogou nomes regionais de animais, rios, plantas e lugares. Captou a fala do geralista mineiro e a trouxe para sua literatura. Histórias, causos e pensamentos do domínio público.

O vaqueiro, ponteira, vanguarda, contracoice da comitiva de que participou João Guimarães Rosa em maio de 1952, pelos Geraes, anunciou-me, também, poeta. Compunha quadras acerca do dia vivido, redivivo:

O Zito bateu o berante

que a terra estremeceu.

O Bendoia cantou um verço

que o povo todo entreteseu.

O Dr. Saio do Rio

com prazer e alegria.

Para acopar uma boiada

para ver o que acotecia.

Riobaldo Tatarana, bastardo, está na casa do padrinho abastado, Selorico Mendes, na Fazenda São Gregório, velando a mãe, quando o jagunço Siruiz entoa os versos:

Urubu é vila alta

Mais idosa do sertão

Padroeira minha vida

Vim de lá, volto mais não

Corro os dias nesses verdes

Meu boi mocho baetão

Buriti, água azulada

Carnaúba, sal do chão

Remanso de rio largo

Viola da solidão

Quando vou pra dar batalha

Convido meu coração

O bardo da jagunçagem convoca a melodia, a partir de então, em todos os dramas da lida sertaneja vida afora, feito leitmotiv. Grande Sertão: Veredas é pontilhado pela Canção de Siruiz, um índice da dialética da existência. Guimarães Rosa transformava, com meandros e traquejos, o popular em erudito e o erudito em popular. Fusão simbólica e telúrica. Medra a ambiguidade fundamental de toda grande arte: o documento e o símbolo.

Criou uma obra singular na literatura brasileira, com temáticas próprias da cultura nacional em exercício inovador de linguagem. Não à toa consideravam-no o rapsodo do sertão mineiro, os Gerais, aquele que capta, coleciona e reelabora histórias do povo local. Transforma a escrita com a oralidade que marca a tradição iletrada do ambiente. Articula ritmos, neologizando: "Um tico-tiquinho de arroio, um esguicho ágil que mijemijava.". Cria neologismos e onomatopéias, com o ouvido em melopeia: "Silvo de plim." Pulsante e obsessiva criatividade lingüística. ““Tudo o que o cê pensar de perguntar no mundo ele perguntou. Ele nem ia lembrar tudo. O Rosa perguntava de tudo. Um dia ele, isso foi pertinho da Tolda, um cerradão. Tinha um pau seco assim, tudo torto. - Pra quê que serve esse pau? Ele perguntou. Não tinha nada de responder. Eu falei. -É pra papagaio chocar. Ele falou. -O cê tem resposta pra tudo. Depois que a gente acostumou com ele era normal. Tinha que responder aquilo que ele perguntava. Era o dia inteirinho, e escrevendo. Cortou um lápis no meio, pôs um cordão e amarrou no botão da camisa, e uma caderneta de arame, passada no pescoço, pendurada. Andano ele escrevia tudo.”

Rosa chega à Fazenda Sirga, para a saga por 240 quilômetros dentro do sertão mineiro, num frio fino de um 13 de maio. Participa de uma festa local de inauguração da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no cemitério onde enterrara sua mãe um certo Manuel Nardi. O famigerado Manuelzão de Uma Estória de Amor, uma das sete novelas de Corpo de Baile. “Tem uma pessoa que eu não cito o nome não. É até uma cumadre. Ela já é falecida. Ela é até muito bonita, muito boa pra cantar. Encontramo ela no caminho das vereda. Aí o Rosa - Boa tarde. E ela - Boa tarde. Esse é o doutor Rosa? Eu falei - É. Ele disse - Não senhor, vaqueiro Rosa. Aí, depois ele falou - Bonitinha mesmo. Ficou olhano pra ela, seguimo a viage. De noite tinha forró e essa pessoa falou que queria dançar com ele. Esse tempo não era esse negócio de chega pra lá, chega pra cá; agarrava e dançava. Tudo descalço. Aí ele ficou encantado. Ele dançou com ela. Mas usava revólver, facão. Ele ficou encantado e disse - Que negócio é esse?! Mas era o sistema do lugar. Aí fomo embora. Meia-noite nóis descemo, fomo embora, e no outro dia nóis saímo com a boiada.”

Miguilim, o menino poeta alter-ego de Guimarães Rosa, míope morador dos fundões do bonito Mutum, personagem central de Campo Geral, é um acanhado garoto da Casa Sede da Sirga, cognominado Miguilinho. O rabequeiro Chico Brabós é o fazendeiro Francisco Barbosa, proprietário da São Francisco. O Morro da Garça, eldorado de Pedro Orósio Pê Boi, Seu Elquiste e a comitiva de padre e latifundiário esteve lá, na viagem, piramidal, enigmático decifrado pelo escritor. Enfim... Histórias. Histórias do período em que Rosa e Zito rumaram pelos Geraes...

Adeus Dr João Roca

o senhor vai me desculpar.

Você seque a tua viagem

e nos vamo voltar.

*Tanael César Cotrim é jornalista

O livro O Rumo do Rosa na Rota de Zito está em pré-lançamento