GUERRA NA EUROPA

Análise da Guerra da Ucrânia Parte II — Por Eunice Prudente e Maria Fernanda Barros

Veja a segunda parte de uma trilogia de artigos que tratará do maior conflito armado da Europa desde a Segunda Guerra Mundial

Créditos: Twitter/ Anastasiia Lapatina @lapatina_
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A vitória liberal apoiava-se na rejeição do comunismo no vazio político da Europa do Leste. A configuração das forças centrípetas propiciava os investimentos nas infraestruturas, para alavancar a economia num mundo de paz e desenvolvimento. Desenhava-se no horizonte uma espécie de voluntarismo liberal no comando dos negócios do mundo com eficiência e racionalidade. As diferenças entre o nacional e o internacional diluir-se-iam e, ao invés de fontes entre duas ordens jurídicas, surgiriam novas pontes de aproximação entre os ordenamentos estatais. A derrota de Saddam Hussein gerou falsas expectativas quanto ao funcionamento do sistema internacional e a substituição de mecanismos para agilizar os processos de tomada de decisões no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O evento iraquiano deu novos impulsos aos velhos ideais ao espalhar a crença que os órgãos decisores do sistema internacional fossem mais democráticos.

A política da manutenção de “zonas de influência” redesenhada pelos europeus ocidentais e os EUA, na visão do Kremlin, representa uma ameaça à sobrevivência da Rússia. Após meses das tensões em torno da Ucrânia, a Rússia lançou uma ofensiva armada contra a Ucrânia, um ataque repudiado pelos membros da comunidade internacional. As razões do conflito armado estão intimamente ligadas às regiões de Donbass, Donetsk e Luhansk, situadas a leste da Ucrânia e que estiveram no centro de um conflito armado entre os separatistas (pró-russos) que autoproclamaram as suas independências prontamente reconhecidas pela Rússia, incumbido o seu exército à tarefa de manter a paz naqueles territórios.

O reconhecimento das independências de Donetsk, Luhansk e Donbass pôs termo aos acordos de Minsk e ao processo de mediação franco-alemão numa guerra que durou 8 anos e custou 14 mil mortes entre os territórios separatistas e a Ucrânia. Afinal de contas, o que são os acordos de Minsk? São um conjunto de acordos assinados em 2014 e em 2015, na capital da Bielorrússia entre a Rússia, a Ucrânia e os rebeldes separatistas.

Estes acordos previam um conjunto de reformas desde a Reforma Constitucional da Ucrânia, as organizações das eleições nas regiões separatistas e posterior reconhecimento das independências pela Ucrânia. Em 21 de fevereiro, os acordos foram proscritos pela invasão da Rússia à Ucrânia. A Rússia enfraquecida busca a retomada do seu poderio no cenário mundial e a redefinição da política das “zonas de influência do leste europeu” pela aliança política-militar do ocidente (outro nome da OTAN), criada em 1949 por 12 países, dentre os quais: Canadá, Estados Unidos, França, Reino Unido e que hoje conta com 30 Estados-membros, e todas as decisões da OTAN são tomadas por unanimidade.

Os seus membros assumem compromissos de se protegerem mutuamente em caso de ataque contra um membro da aliança — é o princípio de defesa coletiva, consagrada no artigo 5º do tratado de Washington, invocado pela primeira vez (em 2001), em resposta aos atentados de 11 de setembro contra os Estados Unidos. A sua missão principal, outra missão da história, que jamais desapareceu, é a defesa da Europa em plena Guerra-Fria vis a vis à ameaça da URSS. Para a Rússia, o crescimento da OTAN representa uma ameaça à sua sobrevivência, quando a OTAN não esconde a sua pretensão de ultrapassar a linha vermelha com o objetivo de integrar a Ucrânia à Organização, agindo contra as promessas que haviam sido feitas ao ex-Presidente da ex-URSS, Gorbachev, e reiteradas em Kiev em 2008.

Há que evitar a todo custo que o conflito bélico entre dois atores do leste da Europa (Rússia e Ucrânia) se transforme numa guerra total entre os membros da OTAN e a Rússia pelo potencial destrutivo e pelos perigos que envolvem o uso de armamentos sofisticados. Co urge a suspensão das hostilidades no terreno e que a diplomacia multilateral entre em campo “da batalha” para a cessão das hostilidades entre a Rússia e a Ucrânia.

As negociações de paz devem envolver a Rússia de um lado, e de outro, os Estados Unidos/OTAN. A prudência, recomenda! E a todo custo evitar que uma guerra local se transforme numa guerra total que leve à destruição da espécie humana. 

A guerra da Ucrânia expôs a face cruel do racismo na guerra e demonstrou a forma como os eslavos interiorizaram o racismo, a ponto de hostilizar os negros africanos e sua diáspora e os indianos, impedindo-lhes de exercer um direito universalmente reconhecido a todos os seres humanos: o de locomoção, de imigrar ou de se refugiar. A ação arbitrária das autoridades ucranianas constitui uma violação flagrante dos dispositivos constantes do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, nos seguintes termos: “considerando que o reconhecimento da dignidade humana inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo.”.

O artigo XIII.1 prossegue: todo o homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado; 2. Todo o homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar. Brancos e não brancos (negros e africanos da diáspora, estudantes universitários liberais, pais de família, crianças, jogadores de futebol e indianos) têm direito de migrar.

E na guerra da Ucrânia negros e brancos estavam expostos a uma situação de perigo iminente. Entretanto, os negros e os indianos ficaram racialmente discriminados e impedidos de deixar o território ucraniano por vias férreas, marítimas ou aéreas, alegando as suas autoridades locais que os ucranianos brancos tinham o privilégio e preferência de se deslocarem para fora do país em detrimento dos negros e indianos que viram os seus direitos e liberdades sendo-lhes negados e assistiram aos seus filhos serem retirados dos trens a força e convidados a andar a pé caso queiram deixar a Ucrânia.

Continua...

*Eunice Prudente é jurista, professora de Direito da USP e secretária de Justiça da Cidade de São Paulo.

*Maria Fernanda Barros é mestre e doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP e professora licenciada da Universidade Zumbi dos Palmares.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.