DESCASO

A pandemia do novo coronavírus e a perversidade do presidente – Por Jorge Abssamra Filho

Em novembro teremos uma nova oportunidade eleitoral, nos cabe a tarefa de nos lembrarmos de tudo o que ocorreu, pois como disse Edmund Burke "um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la"

Créditos: Agência Brasil
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No dia 31 de dezembro de 2019, o mundo se preparava para a passagem de ano, seria mais um réveillon com votos de prosperidade, paz e saúde. No Brasil, a tradicional canção de fim de ano era entoada com a esperança de dias melhores. Com ansiedade, muitos esperavam a virada do ano para cantarem em família: "Adeus ano velho, feliz ano novo, que tudo se realize no ano que vai nascer, muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender".

Enquanto os preparativos tomavam conta do cotidiano, o governo da China notificou a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre graves casos de pneumonia na província de Wuhan.

O ano de 2020 chegou, e logo no início de janeiro a ideia de "saúde pra dar e vender foi por água abaixo". Já no dia 7, autoridades de saúde do governo Chinês constataram que a causa da pneumonia identificada no final de dezembro era resultado de um novo coronavírus. Foi assim que se iniciou o caos que até hoje estamos vivendo, dois dias depois, no dia 9, a primeira morte em decorrência de coronavírus foi registrada, enquanto no dia 23, a cidade de Wuhan foi colocada em quarentena.

O episódio ocorrido na China passou a preocupar a comunidade internacional, de modo que ainda em janeiro buscou-se formas distintas para impedir que o vírus saísse de seu epicentro, mas ates mesmo de o cerco contra o vírus fosse fechado, casos foram registrados na Ásia, Europa e América do Norte.

Em fevereiro de 2020 o termo Covid-19 passou a ser utilizado pela OMS, no dia 26 do mesmo mês, o Brasil registrou seu primeiro caso, enquanto no dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde passou a utilizar o termo pandemia. Desde então, vivemos um drama que parece estar longe do fim.

Até o momento, o Brasil ocupa a lamentável segunda posição em número de óbitos com mais de 670 mil mortos e 32 milhões de registros de infecções, enquanto o mundo registra perto 6,5 milhões mortes e próximo de 550 milhões de pessoas infectadas em mais de 200 países de todos os continentes.

A ideia de "saúde pra dar e vender" entoada nas canções de final de ano ficou muito longe da realidade mundial, a pandemia do novo coronavírus se tornou o maior problema global do século e um dos mais graves da história da humanidade.

Diante desse grave cenário, as autoridades políticas do mundo precisaram dar respostas para o dilema da pandemia. Infelizmente, em nosso país, as respostas foram as mais atrasadas, perigosas e nefastas, chegando ao ponto de Jair Bolsonaro, atual presidente do Brasil, ser considerado responsável pela expansão do vírus, atrasar a implementação da vacina e o mais grave, pelo enorme número de mortes em todo o país.

No Brasil, o novo coronavírus apresentou manifestações diferenciadas. Em maio de 2020, tornou-se a principal causa mortis no país. No cotidiano da rotina médica, um caos se estabeleceu entre 2020 e 2021, até o desenvolvimento da vacina e sua consequente aplicação na sociedade brasileira.           

Como médico, eu jamais testemunhei algo semelhante e o baque do novo coronavírus foi tão intenso que até hoje me pego nas memórias do caos que eu e meus colegas da saúde vivenciamos durante o auge da pandemia.

Não foram poucas as vezes que eu chorei durante o plantão, em muitos outros episódios, me deparei com o absoluto medo da morte. Sou oncologista e em meu cotidiano convivo com a morte em sua face cruel do câncer, mas a pandemia mostrou-me algo mais intenso e mais perverso que jamais me deparei.

O sentimento de derrota foi tamanho que muitas vezes me encontrava chorando nos corredores dos hospitais sem ao menos poder ser abraçado e amparado por meus colegas de plantão ou familiares. Fiquei dias sem retornar para casa para não levar o vírus para a minha família e quando testei positivo, um profundo medo me tomou, e por pouco não me derrotou.

Perdi colegas de trabalho, amigos e parentes, como muitos leitores desse texto, tenho certeza de que a esmagadora maioria dos mortos poderiam ser evitados, mas a negligencia do governo federal, consequentemente, do Ministério da Saúde, foram responsáveis diretos pelo caos que atravessamos.

No dia a dia do hospital, a realidade da negligência de efetivas políticas públicas de saúde toma a forma da crueldade quando o paciente morre por falta de infraestrutura, insumos, materiais, condições adequadas de tratamento e vacinas.

No cotidiano da emergência fui testemunha ocular dos descasos do Ministério da Saúde, uma pasta essencial para nosso país, mas absolutamente negligenciada pelo presidente. No atual momento, os rumos da saúde brasileira são pensados pelo ministro Marcelo Queiroga, mas, desde o início do governo Bolsonaro, a pasta passou também pelas mãos de Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello, quatro ministros em uma gestão que não soube como lidar com a pandemia, negligenciou a força do vírus, não criou um programa de ação efetiva de combate, negou o uso de máscaras e brincou com as vidas que sucumbiram para o novo coronavírus.

Quando o Brasil registrava 77 mortes em decorrência da Covid-19, o presidente afirmou “brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”. Seu desconhecimento dos problemas sanitários do país e da força do vírus são elementos estruturantes de seu despreparo e desprezo pela a vida; o mesmo pôde ser notado quando respondeu a uma jornalista em 20 de abril de 2020 sobre o aumento do número de mortes em decorrência do novo coronavírus “Eu não sou coveiro”, ou 8 dias depois, quando afirmou “E daí, lamento. Quer que eu faça o que?”.

Se Bolsonaro entrasse em uma ala de Covid de um hospital qualquer e ouvisse ao menos um profissional de saúde, certamente sairia com as respostas sobre o que fazer, mas, suas motociatas e aglomerações foram mais importantes do que lutar pela vida de seus compatriotas.

A negligência de Bolsonaro no combate da pandemia foi se tornando cada vez mais evidente, suas falas deixaram todos cientes de sua irresponsabilidade e indiferença. Em 2 de junho de 2020, quando o país registrava 31.999 mortes, Bolsonaro disse: “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”.

Para o presidente do Brasil, a morte é o destino, portanto, não adianta criar instrumentos de defesa para salvar vidas, tampouco, desenvolver mecanismos de combate à pandemia. Nos cabe, tão somente esperar a morte chegar, pois para Bolsonaro, a morte em decorrência do novo coronavírus “é como uma chuva, vai atingir você”.

Enquanto sua boçalidade chocava a comunidade internacional, no cotidiano dos hospitais, médicos, enfermeiros, auxiliares e todos os profissionais da ponta, por juramento e compromisso ético em defesa da vida, lutavam diuturnamente. Nossa luta, parecia vencida, mas a vacina seria o nosso super poder para enfrentar o vírus, entretanto algo precisava e ainda precisa ser feito para derrotar o hospedeiro Bolsonaro e sua legião de imbecis.

Quando já ultrapassávamos as 160 mil mortes, em novembro de 2020, os questionamentos sobre a condução do Ministério da Saúde se avolumavam, encurralado diante das críticas na gestão da pandemia, Bolsonaro disse: “país de maricas”. Sua fala chocou o mundo todo, enquanto no mesmo dia, no interior de um plantão médico, tive que assinar diversos óbitos e engolir a seco a imbecilidade do presidente de nosso país.

Os mortos deixaram de ser sepultados, sem despedida, nossos irmãos e irmãs partiram em um silêncio ensurdecedor. As lágrimas dos parentes atravessam até hoje a minha alma. Não podia abraçar os familiares de meus pacientes, não pude confortá-los no momento mais delicado de suas vidas, e me perguntava a todo tempo sobre onde falhamos, quando iria acabar e quando iríamos vencer?            

A vacina seria a nossa arma para acabar com a expansão das mortes, caberia ao governo federal lutar para acelerar os processos de aquisição das doses, mas o presidente Bolsonaro negligenciou diversos contatos da farmacêutica Pfizer. Entre março de 2020 a dezembro do mesmo ano, foram mais de 30 tentativas de contato da empresa com o governo federal sem respostas oficiais para a compra de vacinas, no mesmo período a escalada de mortes parecia não ter fim.

Bolsonaro escolheu não comprar as vacinas, assim como, sem nenhum respaldo técnico, escolheu também orientar a população para procedimentos sem base científica, tais como o uso de hidroxicloroquina. Sobre a vacina, instrumento que salvaria a vida dos brasileiros, escolheu declarar publicamente a sua boçalidade ao afirmar no dia 17 de dezembro de 2020: “Se tomar vacina e virar jacaré não tenho nada a ver com isso”.

Enquanto a maior autoridade da nação afirmava que a vacina poderia transformar as pessoas em jacarés, eu e todos os profissionais da saúde atuávamos na linha de frente de combate ao coronavírus. Perdi as contas de quantos óbitos assinei, e muitos outros eu testemunhei. Chorei com colegas de profissão diante de dias intermináveis, com pacientes nos mais graves sintomas da Covid-19.

O drama parecia não ter fim, sozinhos lutávamos uma luta inglória contra um inimigo invisível, mas tínhamos a certeza de que nossas armas seriam produzidas pela ciência, por pesquisadores sérios e comprometidos, com pesquisas sólidas e necessárias. Até a chegada da vacina, eu chorava sozinho, sem abraços e em uma solidão profunda, desamparado pelos representantes políticos de nossa nação.

Diante desse quadro eu decidi gritar, decidi colocar para fora todas as vezes que chorei diante de pessoas que morreram por negligência de um governo obscurantista, de um presidente negligente, incapaz de compreender a realidade vivida e insensível diante da morte de nosso povo.

Quando o Brasil já tinha sepultado mais de 230 mil compatriotas e a vacina se tornava ainda mais urgente, Bolsonaro disse: “O cara que entra na pilha da vacina é um idiota”. Essa declaração de um chefe de estado é uma ofensa a todos aqueles que perderam seus entes queridos e um desprezo a população que se sentia amedrontada diante da escalada de mortes.

Em meus plantões, muitos pacientes poderiam não ter morrido e muitos brasileiros teriam razões para sorrir se seus entes queridos tivessem acesso a vacina e se o Governo Federal tivesse coordenado a pandemia do ponto de vista científico e não obscurantista.

Neste atual momento, no terceiro ano da pandemia, ultrapassamos as 670 mil mortes, muitas dessas eu assisti na lamentável condição de testemunha ocular. Vi os últimos olhares, as últimas lágrimas, o último suspiro e o sentimento de medo diante da morte. Também testemunhei a revolta, a tristeza e o lamento dos familiares ao receber a trágica notícia de que seu ente querido morreu em decorrência da Covid-19.

Resgato com pesar essas memórias com o objetivo de gritar contra a maldade, negligência, incompetência, obscurantismo e boçalidade de Jair Messias Bolsonaro, ao mesmo tempo, lembrar de que o juramento que fiz em defesa da vida foi interrompido pela perversidade e crueldade de um homem que foi eleito presidente de nosso país.

Em novembro teremos uma nova oportunidade eleitoral, nos cabe a tarefa de nos lembrarmos de tudo o que ocorreu, pois como disse Edmund Burke "um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la".

*Jorge Abssamra Filho é médico com especialização em clínica médica e oncologia. Membro titular da Sociedade Brasileira de Cancerologia. Professor convidado de oncologia da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo e observer de câncer de pulmão, cabeça e pescoço do MD Anderson Cancer Center pela Universidade do Texas.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.