Um integrante de um grupo bolsonarista no Telegram fez um paralelo com a informática para explicar a necessidade de um profundo recomeço para o Brasil; segundo ele, quando a utilização de um antivírus não é suficiente para “apagar o invasor e limpar os arquivos infectados”, recorremos à formatação: “apagar tudo e reinstalar novamente o sistema operacional isento de invasores e vírus”. A mensagem foi postada dois dias antes do ataque às sedes dos três poderes constitucionais em Brasília no último dia 08, e é uma bela síntese do rumo que tomou o pensamento de direita no país nos últimos anos: se não pudermos controlar o Brasil, ele precisa ser sacrificado em nome de um bem maior.
Recordemos que ainda em março de 2019 Bolsonaro anunciava que a partir dali seria preciso “descontruir muita coisa”; quase quatro anos depois, como já conhecemos plenamente sua personalidade, sabemos muito bem que se tratava de um eufemismo; o que se dizia realmente é que muita coisa precisaria ser destruída. A destruição do Brasil logo se tornou um tema estruturante do discurso bolsonarista, ora como ameaça, ora como proposição. O “superministério” da Economia foi criado para ser o centro de coordenação do desmonte do patrimônio público – e, portanto, dos ativos estratégicos do país e dos nossos (já precários) instrumentos de fomento ao bem estar coletivo. Paulo Guedes pode até ser economista de formação, mas esta nunca foi a função que exerceu no cargo público; na verdade, ele foi um player, que jogou em função dos interesses do grupo de especuladores do qual faz parte.
O tão romanceado casamento entre Bolsonaro e Guedes não poderia ter dado mais certo: foi um autêntico encontro entre aspirações de destruição do Brasil. Logo, os entusiastas do colapso, ocupando o poder público, canalizaram todos os recursos necessários para fomentar o extremismo de seus adeptos; eles passaram a compartilhar a crença de que se a sociedade brasileira, tal como a conhecemos (e aliás, com seus vícios e virtudes), fosse desintegrada, caberia a eles conduzir a pilhagem do que restasse, por meio da imposição e da violência. (Daí se começa a explicar, por exemplo, a importância conferida por eles ao tema do indivíduo armado e municiado, pronto pra saquear o patrimônio público ou privado, conforme seja o caso.)
É certo que o ódio da direita ao Brasil é escamoteado por uma estética nacionalista. São utilizados permanentemente – e de maneira ensandecida – os símbolos, cores, hinos e bandeiras que remetem direta ou indiretamente à entidade nacional. Mas o paradoxo é apenas aparente; o bolsonarista ostentará o verde e amarelo e cantará o hino com a mão no peito, mas algum deles terá sido visto valorizando aquilo que realmente nos faz brasileiros? Algum deles terá dedicado seu tempo, sua atenção e seu cuidado aos Tipos e aspectos do Brasil (para citarmos o título de uma importante coletânea organizada pelo IBGE em 1966)? Terá se interessado em conhecer algum dos vales submersos da Amazônia? Em visitar o Mercado Ver-o-Peso em Belém? Ou a famosa Feira de Campina Grande? Colecionar peças de cerâmica popular e tecidos de renda do Nordeste? Viajar pelo Grande Sertão (literária ou literalmente)? Conhecer a riquíssima história da Guerra do Contestado, etc.? Sabemos que não.
Ignorando a riqueza e a complexidade características de nossas culturas e identidades, a direita reitera velhos preconceitos e visões deterministas e estigmatizadas sobre a constituição social do povo, com seu desgastado imaginário de aversão ao brasileiro e sua ignorância sobre o que constitui nosso patrimônio histórico e artístico. Mas apesar de desgastado, este imaginário é frequentemente reciclado, e faz permanecer uma antiga tese conservadora, segundo a qual o Brasil estaria geneticamente condenado ao atraso, em função do suposto predomínio de traços degenerativos, que provocariam, por exemplo, uma aversão ao trabalho e consequente propensão à vagabundagem – o que, consequentemente, alimenta a ideia da necessidade de uma “reinicialização” do país. (Ressalto, contudo, que a questão da cultura e da identidade brasileira tampouco será procedente abordar na chave oposta, ou seja, a da idealização e da romantização. Parafraseando um grande pensador que provém da milenar cultura chinesa, em termos de tradição, é necessário saber herdar criticamente para inovar respeitosamente.)
O que move o bolsonarista, portanto, não é nem de longe um sentimento de admiração pelo Brasil e por seus semelhantes; apesar da retórica apaixonadamente inflamada, seu patriotismo é frágil, pobre de espírito e escasso em recursos simbólicos. Ao idealizar o colapso do país como condição para um recomeço glorioso, o que o bolsonarismo revela é o desejo de prosperar economicamente sobre as nossas ruínas. E o engodo se complementa, ainda, com a fantasiosa denúncia do “globalismo”, um espantalho criado por ideólogos da direita norte-americana e importada pelos daqui para amparar seu discurso nacionalista de mentirinha, que, no entanto, pode ser refutado a partir de uma simples premissa: se o globalismo seria a grande ameaça externa à soberania do Brasil, por que a política econômica do governo Bolsonaro, este “anti-globalista”, foi orientada por um sentido de desnacionalização dos fluxos da riqueza aqui produzida?
Mas a evidência mais escandalosa de ódio pelo Brasil e por seu povo por parte do governo derrotado nas últimas eleições talvez tenha sido a condução da crise sanitária provocada pela pandemia que se alastrou pelo mundo nos primeiros meses de 2020. Em cada pronunciamento ao país que então governava, Bolsonaro reiterava seu convite à aceitação da morte, à naturalização do desespero. Não me cabe aqui repetir suas frases mórbidas; todo brasileiro que acompanhou racionalmente a toada dos acontecimentos sabe que o então presidente priorizou a disseminação do vírus em detrimento do exercício da governança. Depois que as vacinas contra a covid-19 passaram a ser aplicadas em massa no mundo todo, o governo Bolsonaro, em busca da preservação de sua imagem pública e procurando reduzir eventuais danos políticos, mudou ligeiramente de figura, e fingiu agir em amparo aos brasileiros que sucumbiam com a doença, mas jamais lhe foi possível ocultar os indícios dos seus crimes humanitários. Muitos dos próprios adeptos de seus lemas se deram conta, naquele momento, que quanto mais vulnerável o brasileiro, social e economicamente, mais ele seria tratado com o desprezo de quem o odeia, e que não lhe vê como um compatriota, tampouco como ser humano.
Agora, mesmo após a fuga de Bolsonaro, o ódio que seus seguidores nutrem pelo Brasil não diminuiu em intensidade; na verdade, aumentou. Como sempre acontece quando se odeia algo ou alguém, este objeto do ódio é sempre visto de maneira distorcida, caricaturizada e excessivamente simplificada pelo sujeito que odeia. Assim, tudo que diz respeito ao Brasil é comprimido pela direita em versões burlescas, absurdas, de nossa história, nossas culturas, nossos povos. Em postagem recente nas redes sociais, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) disse:
“A 1ª estrutura de esquerda organizada no Brasil surgiu em 1922 com o PCB (Partido Comunista Brasileiro) em Niterói-RJ. Quase 100 anos depois, em 2018, sob a liderança de Jair Messias Bolsonaro surgiu um movimento de direita. Estamos numa maratona e apenas demos os primeiros passos. Uma eleição não muda quem sou, a educação que dou a minha filha e muito menos altera meus princípios. Quem resistir mais vai ganhar [sic]”.
Intelectualmente indigentes, os membros da família Bolsonaro não têm condições de esconder sua ignorância sobre o Brasil – o primeiro movimento de direita terá mesmo surgido aqui há apenas quatro anos? Nunca pisaram no chão do país ao qual dizem sem qualquer convicção ter orgulho de pertencer. Mas a afirmativa em tom de ameaça do deputado – “Estamos numa maratona e apenas demos os primeiros passos” – deve servir de alerta a todos nós que condenamos a última moda direitista, que é odiar o Brasil. A marcha sobre Brasília do dia 08 de janeiro pode ter sido um belo tiro no pé do ponto de vista estratégico, mas nos evidenciou cabalmente que na linha de pensamento bolsonarista, o colapso é visto como uma oportunidade, se não de tomar o poder, pelo menos de manter viva a excitação dos que se mobilizam orgulhosamente para perturbar a tão acalentada aspiração de paz pelo povo brasileiro.
Aliás, estou convencido de que se há uma razão crucial para que Bolsonaro tenha sido derrotado nas eleições, é a de que a maioria dos brasileiros não deseja outra coisa senão poder tocar a vida com um mínimo de tranquilidade. Em cada família batalhadora certamente há um núcleo de bom-senso que lhes faz repudiar as ações daqueles que, cada vez mais explicitamente, têm pretendido manter o país preso a uma sucessão infindável de crises políticas, que alimentam as cisões entre quem outrora comungava dos mesmos espaços de sociabilidade, e que ofuscam nosso horizonte de expectativas comuns com a constante ameaça ou o efetivo emprego de violência. O bolsonarismo pretendeu transformar a política em uma arena de proposições disruptivas, mas o resultado da eleição presidencial significou que a maioria realmente deseja condições estáveis de vida e de trabalho, e que não quer mais ter que conviver com um conflito pulverizado de brasileiros contra brasileiros.
Tudo aquilo que nós almejamos enquanto um povo se adapta – mal ou bem – a cada momento histórico, às circunstâncias do presente, que nos orientam na definição do que é desejável e do que é possível alcançar coletivamente. A ampla frente política que se formou em torno da figura do presidente Lula corresponde a um desejo de estabilização da vida pública nacional, contra o qual foi desferido o ataque à Brasília. Naquele domingo, a mensagem bolsonarista era a promessa da permanência do caos. É sobretudo por isso que, acredito, o governo que ora se inicia merece que nele depositemos ao menos algumas esperanças sensatas (para empregarmos uma expressão utilizada pelo historiador italiano Paolo Rossi em seu pequeno livro Esperanças, para se referir a certas “razões que podem nos poupar o desespero”).
Contudo, devo esclarecer que, para mim, os problemas políticos de uma comunidade nacional tão complexa como a nossa ou se agravam ou se resolvem apenas parcialmente, quase sempre de maneira insatisfatória (pelo menos para alguns, ou muitos...). Portanto, em termos de governança, podemos afirmar a inexistência de soluções fáceis, de atalhos rumo a uma sociedade cujos membros compartilhem harmoniosamente seus valores, suas aspirações, seus interesses. Digamos, sem tergiversações, que é certo que haverá (muitas?) questões mal resolvidas, desentendimentos, atritos – até aí, nada que não faça parte do domínio da política. Neste momento, contudo, a prioridade deve ser apenas uma, indisputável: neutralizar os que odeiam o Brasil, e que se organizam e se mobilizam em torno deste sentimento.
As esperanças sensatas, conforme Paolo Rossi, até podem ser muito modestas e pouco entusiasmantes, mas, ele ressalta, “Um ponto é, de todo modo, importante: não se deve subestimar ou considerar pouco significativo que se tenha feito um progresso, mesmo se não abrange (por enquanto) todo o gênero humano”. A virulência da direita contemporânea e o imperativo de resistir a ela com sobriedade me fazem pensar, ainda, em outro intelectual italiano; encontrando-se em uma situação extrema, Antonio Gramsci, preso político do regime fascista de Mussolini, escreveu numa carta a seu irmão em dezembro de 1929: “Tenho me armado especialmente com uma paciência ilimitada, não passiva, inerte, mas animada pela perseverança. É certo que hoje há uma crise moral muito grave, mas [também já] houve tantas outras no passado” – ao que podemos acrescentar que ainda virão outras tantas no futuro. Não creio que será pouco significativo se, de crise em crise, conseguirmos abrir caminho para a melhoria das condições de vida material e intelectual das nossas maiorias.
Será preciso, portanto, mobilizar as razões que nos permitam contornar o desespero. Se negar a viver cada dia como se fosse o último será o início do fim do terrorismo bolsonarista. Permanecendo em meio ao povo, deverá caber às esquerdas o papel de catalisar as fontes difusas de esperança, e assim despoluir gradualmente a vida política nacional. Agora, a supressão do ódio organizado contra o Brasil deverá corresponder a um primeiro momento em que poderemos respirar profundamente depois de anos de asfixia, para então passarmos a trabalhar com obstinação e pragmatismo contra a pobreza, que hoje submete mais de um terço da nossa população, e pela abertura de perspectivas mais amplas para o nosso desenvolvimento.
*Bernardo Rocha Carvalho é estudante de Doutorado em História na UFMG