DEBATES

Governador Caiado versus desembargador Adriano – e o “fim da PM” – Por Pedro Chê

O setor militarista recebeu enquanto espólio a difusão da premissa de que discutir esse assunto pode ser rebatido a partir de simplórias desqualificações

Imagem ilustrativa.Créditos: SSPGO/Wildes Barbosa
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O desembargador Adriano Roberto Linhares teve o inegável mérito de, ao brandar pelo “fim da polícia militar”, trazer uma discussão que se encontra invisibilizada. Se nas décadas de 90, 2000 e até mesmo nos anos 2010 a desmilitarização das polícias era um tema a ser tratado, hoje vivenciamos um contexto distinto.

Não é provável que a vitória do discurso militarista, tanto dentro da sociedade – como na polícia, seja algo de natureza “perpétua”, mas é certo que ao vencedor não foram apenas ofertadas as batatas. O setor militarista recebeu enquanto espólio a difusão da premissa de que discutir esse assunto pode ser rebatido a partir de simplórias desqualificações a própria discussão. Assim, acadêmicos, ativistas e policiais, como este humilde escritor, ao levantarem qualquer bandeira em prol do debate são logo taxados como irrealistas, inimigos da PM, além de outros adjetivos ainda piores.

“Quem não é contra nós é por nós”? Não necessariamente, esse é um tema defendido, principalmente, por alguns (poucos) que perceberam que não só há algo de muito errado com a Segurança Pública e com as polícias brasileiras, como também, para o bem de nosso próprio povo, mudanças tem de ser feitas. O que não é fácil no atual ambiente político brasileiro, pois aquele que talvez seja o pior sistema de segurança pública do mundo (pelos seus resultados), é tido largamente como algo inalterável, e que modificações são utopias, loucuras. Não precisamos ir longe para entender essa reação, a Caverna de Platão é logo ali.

A vitória da narrativa militarista foi meramente simbólica, e ela tende a ser questionada com mais força no futuro - pois tanto a persistência dos problemas que a originaram como a ilusão que vende cobrarão seus custos -, mas com o que deveríamos realmente nos preocupar é com o distanciamento daqueles que seriam os principais beneficiários.

Um destes seria a própria população, que está assustada e com raiva, enxergando - num expressivo número (40%) - a violência e a criminalidade como o seu principal problema (Pesquisa IPSOS). Se isso não bastasse, de forma ainda mais expressiva, 57% concordaram com a expressão, “bandido bom é bandido morto” (Pesquisa DATAFOLHA), o que não significa apenas um expressivo descrédito no estado e nas instituições, mas num concreto apoio a figura do “batman” de cada dia, a justiça feita com as próprias mãos, a guerra, o soldado herói contra o grande vilão. E o militarismo, dual como é por natureza (nós contra eles), se adequa muito bem a essa lógica simplista, fracassada na segurança pública, mas que tem grandes doses de realismo. Para que os tribunais se temos às ruas?

A raiva, a frustração e a impotência que movimentam esta engrenagem (sentimentos ignorados por muitos), parecem não afastar dessa mesma população um exame racional sobre a situação: em pesquisa promovida pela Anistia Internacional mostrou que 80% teme, ao ser preso, serem objetos de tortura por parte dos policiais. Está bem nítido que parte expressiva de nosso povo transita entre soluções agudas e doloridas, mesmo que não curativas.

Outro grande beneficiado por uma desmilitarização seria a própria base das Polícias e Bombeiros Militares, que, se no passado, chegaram a apoiar a proposta em mais de 70% (dessa vez a partir de levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), mas que, em virtude de uma adesão ideológica a partir do movimento bolsonarista (em que se atribui ao militar mais honradez, caráter, dignidade em comparação a população civil), e como consequência da reforma da previdência, se esvaiu. Não que ele inexista, não que em números o apoio presente não seja considerável (e parece o ser), mas, por exemplo, as associações de Policiais e Bombeiros Militares não têm mais a disposição de antes para levar esse debate a frente, pois ele se tornou mais moral do que deveria e eles precisam dos votos para as suas devidas reeleições.

É comum no Brasil, quando se pensa em polícia, e neste quadro a PM não está só, entendê-las como um instrumento de combate, como um braço urbano do trabalho das forças armadas (e as GLO’s contribuem culturalmente para isto), ao invés de serem tidas e queridas como um serviço público na acepção precisa da palavra, com governança técnica, transparente, comunitária, orientada a partir de uma cultura que vise a mediação de conflitos e que busque se afastar de práticas abusivas.

A fala do Adriano e a réplica do Caiado nos deram uma oportunidade interessante de erguer um assunto que anda escondido e censurado. Talvez o Adriano tenha sido impreciso ao pedir o “fim da polícia militar”, mas foi certeiro ao dizer que temos que rever a atividade policial sob o escrutínio do Estado Democrático de Direito. Nosso modelo de investigação seria algo antiquado e pouco eficiente? E o militarismo, especificamente nas polícias brasileiras, em virtude de nossa história política, contribuiria como um meio a mais para o abuso, para o assédio, e para a violência policial? Precipitados dirão que há outras polícias militares e militarizadas pelo mundo, mas a resposta sobre a pertinência destas no Brasil não tem a ver com isso, mas com a sua forma de conviver com a sua respectiva sociedade.

Pensamos e ministramos, enquanto sociedade e estado, o mesmo remédio há décadas e vende-se, ano após ano, a ideia de que “agora” os resultados serão diferentes. Esse otimismo frente ao absurdo, digno dos feitos do Barão de Münchhausen, é usado para interditar qualquer debate estruturante (quanto a estruturas institucionais e culturais). As mudanças (que mudanças?) adviriam de softwares, cursos, viatura e investimentos financeiros. Me pergunto qual será a moda da próxima estação, pois adoramos guinar pelas saídas fáceis (e falsas).

E quanto ao Caiado? Foi coerente ao que representa, e o que tivemos de bom em suas palavras foi o efeito, pois, repercutiu o debate. Então, Obrigado, e nada mais.

*Pedro Chê é Policial civil no Rio Grande do Norte e membro do grupo Policiais Antifascistas.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.