DEBATES

Agora, ‘emendas pix’ estão invisíveis à fiscalização de órgãos federais – Por Paulo Corrêa

Mais de R$ 6 bilhões em emendas parlamentares, na modalidade de transferências especiais, estão invisíveis aos órgãos de controle federais

Créditos: Elaine Menke/Câmara
Por
Escrito en DEBATES el

Mais de R$ 6 bilhões em emendas parlamentares, na modalidade de transferências especiais, estão invisíveis aos órgãos de controle federais. Um recente acórdão publicado pelo TCU (Tribunal de Contas da União - Nº 518/2023 – Plenário) atribuiu a vigília desse tipo de repasse financeiro aos sistemas de controle locais (estados e municípios). A decisão da Corte, de forma indesejada, ocultou essa novidade do ciclo orçamentário brasileiro do radar de operações do MPF (Ministério Público Federal), do DENASUS (Departamento Nacional de Auditoria do SUS), da CGU (Controladoria Geral da União), da Polícia Federal e da Justiça Federal (Nota Técnica Nº 01/2019 - 5ª CCR - do Ministério Público Federal). 

Retirar a competência de órgãos do poder Executivo e do poder Judiciário fragiliza o controle sobre essa modalidade de emenda sem destinação definida? O fato é que há três anos o montante bilionário de transferências especiais está pulverizado em todo território nacional sem qualquer tipo de supervisão e prestação de contas voluntária por parte dos gestores beneficiários. O segredo injustificado sobre onde, quando e como são gastas as transferências especiais são práticas semelhantes ao do orçamento secreto. 

Os órgãos de controle da União têm tecnologia, cultura organizacional e um corpo técnico especializado para executar ações planejadas e permanentes sobre os repasses da União. As emendas parlamentares têm entre suas finalidades reduzir as desigualdades inter-regionais, como determina a Constituição. Mas o entendimento do TCU é de que a verba federal, ao ser transferida para o caixa municipal ou do governo estadual, ‘pertence’ ao ente subnacional.  

Cabe refletir se os órgãos locais têm capacidade equivalente, capilaridade e tempestividade de promover inspeções de natureza contábil, orçamentária e patrimonial sobre as emendas na modalidade de transferências especiais. O acórdão do TCU não trouxe nenhum dispositivo legal (enforcement) de modo a impor responsividade aos gestores públicos. A ‘emenda pix’ assumiu o protagonismo no ciclo orçamentário porque integra a escalada de iniciativas, exitosas, diga-se de passagem, de apropriação do Congresso Nacional sobre o orçamento da União. A análise do colegiado passou ao largo do contexto de empoderamento orçamentário pelo Parlamento brasileiro?  

No Brasil existem 33 Tribunais de Contas brasileiros, divididos em três níveis: União (TCU), Estados (nas 26 capitais e Distrito Federal), dos Municípios do Estado (Bahia, Goiás e Pará) e Tribunais de Contas do Município (São Paulo e Rio de Janeiro). Mas sem recursos humanos e materiais adequados para cumprir a nova atribuição há obstáculos à vista. Principalmente no quesito qualidade informacional associada a um padrão de etiquetagem da informação prestada pelo ente beneficiário sobre o gasto público executado com recursos da União. 

Um diagnóstico da International Budget Partnership aponta uma oferta de dados orçamentários relevantes em diversas plataformas governamentais, mas o país é carente de um orçamento cidadão justamente por ausência de padrão e etiquetagem adequada. Fato que inviabiliza uma análise da eficiência do gasto público (https://internationalbudget.org/wp-content/uploads/2021_OBS_rankings.pdf.). É possível atestar este cenário a partir do universo de 14,3 mil beneficiários das transferências especiais em todo país. As plataformas governamentais da União receberam de 781 prefeituras e de oito governos estaduais algum tipo de dado sobre onde, quando e como executaram as ‘emendas pix’ (consulta disponível em www.painelparlamentar.gov.br). Ainda assim, lidamos com um apagão informacional, acumulado nos últimos três anos, corresponde a 95% da aplicação global dessa modalidade de emenda sem destinação definida. (https://valor.globo.com/opiniao/coluna/emendas-pix-a-semelhanca-do-orcamento-secreto.ghtml). 

Este comportamento expressa a fragilidade no atendimento às práticas de responsividade e accountability na governança orçamentária no país. Se existe uma cultura consolidada de execução das transferências voluntárias pelos entes subnacionais tal aptidão em relação ao monitoramento do gasto de forma previsível, padronizada, compreensível e cidadã é incerta.  Portanto, o desafio dos sistemas locais de controle é enfrentar o Deus-dará orçamentário ao qual foi relegada às 'emendas pix’.  

No cenário atual, o mero preenchimento de campos de dados em plataformas governamentais (Transferegov.br) sequer garante condições para cidadãos leigos em matérias orçamentárias, atores externos (mídias, governos, entidades da sociedade civil) e outros poderes de acompanhar de forma inteligível os gastos públicos. A ausência de um padrão informacional embaralha não apenas a transparência orçamentária para a opinião pública. Redunda também em empecilhos para compreensão daqueles que detém conhecimento das classificações orçamentárias. Mesmo sob os comandos constitucionais estabelecidos no artigo 31 e artigo 70 ou ainda na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) nas seções IX, V e VI, os órgãos de controle pertinentes seguem agindo em excepcionalidades. Um contraste com a cultura fiscalizatória permanente dos órgãos federais.

Neste diapasão, desobrigar os órgãos federais de promoverem rastreamento contínuo das transferências especiais demanda desconsiderar a mobilização contínua dos congressistas em torno da impositividade das emendas parlamentares. Basta verificar as alterações constitucionais nos últimos anos (EC nº 86/15, EC nº 100/19, EC nº 105/20 e EC nº 126/22. Nesta última ação de constitucionalização da impositividade a composição da emenda parlamentar saltou de 1,2% para 2% da receita corrente líquida do ano anterior na esteira da extinção do dispositivo da emenda de relator.) Entretanto, o TCU ancorou-se exclusivamente na literalidade da Emenda Constitucional Nº 105, de 2019, a qual estabelece que os recursos transferidos aos entes beneficiários (governos estaduais e prefeituras) “pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência”. Logo, o recurso federal estaria fora da alçada fiscalizatória da União quanto à efetividade, eficácia, metas, eficiência, controle e qualidade da entrega à população. Se há um desejo por ampliar a velocidade das transferências voluntárias, como é o caso das emendas sem finalidade definida, é necessário avançarmos para uma cultura de responsividade e accountability tão ágil quanto empoderada. 

A emenda parlamentar exerce um papel significativo no país. Os programas estruturantes da União alocam recursos de modo a reduzir desigualdades regionais. Por sua vez, as emendas contribuem para melhorar a qualidade de vida de pequenos municípios no qual o congressista é o porta-voz em Brasília. Não se pretende atribuir às emendas um sinônimo de malfeitos. Assim como deve-se reconhecer o papel de excelência do TCU no controle externo das contas públicas a qual precede, inclusive, de revisões de acórdãos. Mas o fato é que o crescente e rápido volume de retirada de recursos do orçamento federal para emendas parlamentares torna desejável uma maior visibilidade sobre o seu impacto na sociedade a partir do fortalecimento dos instrumentos de controle e não o contrário.  

*Paulo Corrêa é jornalista e pós-graduado em Orçamento Público.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.