DIOGO LYRA

Três vezes vingança - 30 anos da Chacina de Vigário Geral

Em 30 de agosto deste ano, a Chacina de Vigário Geral completou trinta anos. O massacre de 22 trabalhadores se deu em uma ação não oficial de cerca de 40 policiais na favela, que buscavam vingar o assassinato de quatro colegas na noite anterior

Protesto em Copacabana, no Rio, relembra a chacin.Créditos: Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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O interlúdio

Em 30 de agosto deste ano, a Chacina de Vigário Geral completou trinta anos. O massacre de 22 trabalhadores se deu em uma ação não oficial de cerca de 40 policiais na favela, que buscavam vingar o assassinato de quatro colegas na noite anterior, na praça Catolé do Rocha. Os policiais em questão, quase todos oriundos do 9º BPM, pertenciam a um grupo de extermínio denominado Cavalos Corredores. O grupo fora formado ainda no final dos anos 80, durante a gestão Moreira Franco (1987-1990), quando o então coronel Emir Laranjeira assumiu o comando do 9º BPM. Moreira Franco foi responsável por desmantelar todas as contrições impostas à polícia durante o primeiro mandato de Brizola (1983-1986), liberando as forças de segurança para agirem conforme os padrões autoritários da ditadura. Padrões que se definiam não só pelo poder de vida e morte sobre as classes populares, mas também pela corrupção generalizada e a inserção da polícia em diversos mercados ilícitos. Da perspectiva dos policiais, portanto, a resistência ao controle democrático das corporações tratava não só da mera manutenção da violência autoritária de outrora, mas, sobretudo, da defesa de interesses econômicos obtidos por meio de propinas, extorsões e práticas criminais de diversos tipos.   

Quando Leonel Brizola assume o governo do estado do Rio de Janeiro pela segunda vez, em 1991, a organização paralela das polícias em grupos como os Cavalos Corredores já estava novamente entranhada nas corporações. Naquele ano, uma pesquisa divulgada pelo jornal O Globo revelava que ao menos um terço dos policiais militares já havia sido convidado a participar de grupos de extermínio (O Globo, 09/06/91). Em paralelo, ao rancor histórico das corporações em relação à Brizola – cujo primeiro mandato fora marcado pela tentativa de controle democrático da atividade policial e desmantelamento e punição dos grupos de extermínio – se somava um clima generalizado de revolta das corporações, em todo país, contra os bastiões da Constituição de 1988. Havia, decididamente, uma disposição ao revanchismo pairando entre as polícias do Rio de Janeiro, dirigida contra o governo estadual tanto quanto ao processo de redemocratização em si. 

Com apenas 15 dias de governo, as tensões entre Brizola e as corporações policiais já davam o tom do enfrentamento aberto que marcaria seu segundo mandato. Na primeira semana como governador, Leonel Brizola e seu vice, Nilo Batista – que também acumulava a os cargos de Secretário de Justiça e de Polícia Civil – implantaram medidas importantes no que tange ao controle político da atividade policial: em primeiro lugar, foi instituído um Novo Boletim de Ocorrência para os casos de homicídio, no qual os policiais deveriam detalhar uma série de informações sobre as condições do crime; paralelamente, também foi criado o Boletim de Missão Policial, um documento que deveria ser preenchido pelos policiais toda vez que saíssem para uma operação. Na segunda semana de governo, durante o enterro de um policial civil, o deputado estadual e ex-detetive Guilherme da Silva Godinho, mais conhecido como Sivuca, discursava para cerca de 400 policiais presentes na cerimônia, insuflando os agentes contra o governo Brizola – a quem apelou publicamente para que tivesse com os policiais o mesmo carinho que teria para com os “bandidos”: 

Não se deixem morrer. Matar sim, se for preciso. Esse gesto do Secretário é pura demagogia (O Globo, 30/03/91).      

O começo

Quase três décadas antes desse episódio, no dia 28 de agosto de 1964, Sivuca, então detetive da Polícia Civil do Rio de Janeiro, participava do enterro de outro colega, o policial Milton de Oliveira Le Cocq. Os dois detetives possuíam uma longa carreira como policiais, tendo ambos participado da Polícia Especial, na ditadura Vargas, e, posteriormente, do Serviço de Diligências Especiais, já nos anos 50. Criado pelo então secretário de segurança pública, general Amaury Kruel, o SDE atuava como uma força especial da polícia, destinada à limpeza urbana de marginais, moradores de rua e da contenção das massas miseráveis nos subúrbios e na Baixada Fluminense. À época, a imprensa carioca apelidou a força especial de “Esquadrão da Morte”. O detetive Le Cocq fora assassinado por um criminoso conhecido como Cara de Cavalo, durante uma perseguição com intensa troca de tiros. Naquele mesmo dia, policiais civis e militares de todo o estado se articularam para vingar a morte do detetive: por meio de transmissões de rádio, os policiais foram orientados a “fechar todas as saídas do estado e cercar vários morros” (O Globo, 28/08/64). Após os insucessos da busca, no referido enterro, centenas de policiais, entre eles Sivuca, reafirmaram seu compromisso em caçar Cara de Cavalo, prometendo que, daquele dia em diante, para cada policial assassinado 10 bandidos morreriam. Começava ali, ao som de dezenas de disparos para o alto, a história da Scuderie Le Cocq, o primeiro grupo de extermínio moderno do Rio de Janeiro. 

A perseguição à Cara de Cavalo foi um dos principais temas da cobertura jornalística do período. Estávamos, então, nos primeiros meses da ditadura militar, mas tanto as autoridades policiais quanto os jornalistas sentiam-se plenamente livres para normalizar uma operação de vingança que, até vir a suceder – com o fuzilamento de Cara de Cavalo com mais de 60 tiros – deixou um rastro de inúmeros outros cadáveres nas mais diversas regiões do estado. Em menos de quatro anos após o sucedido, inúmeros grupos de extermínio, em especial na Baixada Fluminense, passaram a atuar livremente, sob a alcunha de Esquadrão da Morte, cujo símbolo era uma caveira com ossos cruzados. Desde então, o encontro de cadáveres com os braços para trás, mãos amarradas e sinais claros de execução, se tornou uma rotina no Rio de Janeiro. Nesse contexto, a ascensão dos grupos de extermínio representava muito mais que o mero retrato da arbitrariedade e brutalidade policial. Inaugurava-se, sobretudo, uma era na qual o livre extermínio de indivíduos pobres se tornava uma política pública tácita, ainda que plenamente tangível, das autoridades locais, com o suporte do governo militar. Assim, as vidas sem valor político para o Estado foram adquirindo valor financeiro para os policiais, a partir do dinheiro pago aos matadores para a execução de pequenos marginais, como também, principalmente, com a possibilidade de imersão e gerenciamento da polícia em inúmeros mercados criminais. 

Vigário, 1993

No enterro dos 4 policiais assassinados na praça Catolé do Rocha, em Vigário Geral, o clima de revolta era similar ao que ocorrera décadas antes, no Cemitério do Caju, quando o corpo de Milton Le Cocq foi velado. Diferente do que ocorreu em 1964, porém, os policiais foram impedidos pelo Comandante da Polícia Militar de se comunicarem via rádio e proibidos de realizar uma incursão na favela naquela noite. Segundo uma reportagem, o comandante Carlos Magno de Nazareth Teixeira justificou sua decisão alegando que não toleraria “revanchismo por parte da PM, nem a invasão policial indiscriminada na favela” (O Globo, 30/08/93). Além disso, Cerqueira afirmava categoricamente se tratar de uma operação ilegal dos 4 policiais, deflagrada sem o preenchimento do Boletim de Missão Policial e a posterior autorização do Comando. Em outras palavras, a incursão dos 4 policiais do 9º BPM em Vigário Geral tinha sido uma ação autônoma, à margem da lei e da cadeia de comando da corporação. Sempre pairou sobre este caso a suspeita de que se tratava de uma “mineira”, quando então os 4 policiais teriam decidido se apropriar de uma carga de cocaína que chegava à favela e sido assassinados por outros policiais, igualmente interessados na carga. 

A execução de 22 trabalhadores na favela de Vigário Geral se deu no mesmo dia do enterro dos policiais, onde o ensaio dos seus primeiros passos foi tratado. Aqui é preciso ampliar as camadas de “vingança” contidas na chacina: se, por um lado, o componente de revanche contra a morte dos policiais era evidente, por outro, a Chacina de Vigário Geral também assumia, principalmente, o status de vingança contra o próprio governo Brizola, procurando chantageá-lo com uma série de chacinas – das quais Vigário e Candelária são apenas as mais conhecidas. Em maio de 1991, por exemplo, dois meses após a posse de Brizola, a prisão de três policiais militares e um policial civil ligados a um grupo de extermínio em Caxias deflagrou a execução de seis pessoas em diferentes pontos do bairro Jardim Ana Clara. Naquela mesma madrugada, dezenas de policiais ameaçavam invadir a 60ª DP, onde os 4 agentes se encontravam presos, obrigando o delegado a pedir reforços (O Globo, 17/05/91). Como afirmamos anteriormente, tais ações não eram motivadas apenas pela determinação de manter o poder de vida e morte sobre as classes populares, mas, sobretudo, advinha da defesa dos enormes montantes de dinheiro levantados pela polícia com corrupção, extorsão e participação em mercados criminais. Nesse sentido, o 9º BPM dos Cavalos Corredores era um dos mais bem organizados, violentos e lucrativos batalhões do estado. No decorrer das investigações, graças ao depoimento de um informante, descobriu-se que os Cavalos Corredores tinham o objetivo de desestabilizar o governo Brizola:

No governo do Moreira foi a melhor época pra se arrumar dinheiro... se minerava (extorquia) à luz do dia. O governo Brizola já é um governo que entrou com direitos humanos, viatura não pode entrar na favela, só em operação oficial, essas coisas. Isso incomoda eles (...) a ideia desses grupos é desestabilizar o governo, acabar com esse governo (Jornal do Brasil, 31/10/93). 

A ambição dos grupos de extermínio formados por policiais, dentre os quais os Cavalos Corredores, no entanto, iam muito além de derrubar um governo. Entre os objetivos desses grupos estava a ideia de utilizar parte do dinheiro das extorsões para financiar a campanha política de “padrinhos”, que passariam a agir em prol de seus interesses “por dentro” das instituições democráticas. Segundo o informante, os grupos de extermínio estavam

Tirando uma certa quantia pra financiar campanhas de delegados, oficiais, gente grande, nas próximas eleições. Colocar um na Assembleia, outro na Câmara, pra ter padrinho e, na hora que uma mineira der errado, ter onde recorrer (Jornal do Brasil, 31/10/93).

O presente

Não foi preciso mais que duas horas para que a polícia matasse 17 pessoas na favela do Jacarezinho, na manhã de 6 de maio de 2021. No decorrer da operação, outros 9 indivíduos foram assassinados, totalizando 28 mortos naquela que foi, até agora, a maior chacina policial da história do Rio de Janeiro. No cerne do massacre, a vingança pela morte de um policial da Coordenadoria de Recursos Especiais, a CORE, logo nos primeiros minutos de operação da referida delegacia especializada na favela em questão. Mas, como há trinta anos, são diversas as camadas que dão corpo a esta chacina, com similaridades e diferenças cruciais em relação à Vigário Geral. Como nos anos 90, na Chacina do Jacarezinho, dentre outras mega chacinas policiais (eventos com 8 ou mais civis mortos), a intenção era/é resistir ao controle democrático da atividade policial, por meio da desestabilização de certas autoridades públicas e do próprio sistema democrático brasileiro. À época, a chacina foi produzida como uma forma de afrontar o Supremo Tribunal Federal que, por meio da ADPF 635, havia determinado restrições às operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro – como já fizera Brizola há 40 anos atrás, no seu primeiro mandato como governador. 

São as diferenças entre as chacinas, entretanto, que denotam o acúmulo da resistência policial aos mínimos padrões democráticos. Diferente de Vigário Geral, quando os matadores da polícia invadiram a favela encapuzados, agindo sob a forma pura de grupo de extermínio, na Chacina do Jacarezinho a matança ocorreu de cara limpa, sob o emblema de uma operação legal, caracterizada, com a anuência do governador, do Ministério Público e do comando da corporação. A Chacina do Jacarezinho se deu em um contexto no qual as operações motivadas por vingança, de caráter eminentemente ilegal, constituem 5% de todas as operações policiais realizadas no Rio de Janeiro entre 2007 e 2022, conforme aponta a série histórica do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos. Por outro lado, a Chacina do Jacarezinho se deu em um contexto no qual a eleição de “padrinhos”, idealizada pelos Cavalos Corredores em 1993, chegava ao seu ápice político em 2018, com a eleição de 72 militares deputados e senadores, além da presidência da república e diversos governos estaduais, dentre os quais o do Rio de Janeiro. A Chacina do Jacarezinho também é fruto do desmantelamento do controle político das polícias, que passaram a agir sem prestar contas a nenhuma autoridade desde a dissolução da Secretaria de Segurança Pública, pelo governo Witzel e Castro. Finalmente, a Chacina do Jacarezinho se diferencia de Vigário Geral na medida em que a coalizão de atores da sociedade civil, formada em torno da ADPF das Favelas, se encontra no seu ponto mais maduro e combativo, exigindo não só das autoridades locais, mas também das instâncias federais, sua efetiva e tardia entrada na vida democrática do país.     

*Diogo Lyra é bacharel em direito pela UERJ e doutor em sociologia pelo IUPERJ. É autor do livro A República dos Meninos: juventude, tráfico e virtude 

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