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Entenda o que muda com o Marco Legal dos Games – Por Márcio Filho e Pedro Zambon

Veja as principais alterações que virão com a entrada em vigor da Lei dos Jogos Eletrônicos

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Em continuidade a série de artigos que estamos publicando para explicar a importância e impacto do Marco Legal dos Games (Lei 14.852/2024), este terceiro texto tem como objetivo esclarecer acerca dos benefícios e medidas promovidas pela legislação para o setor de entretenimento e cultura, como proteção às crianças, investimentos em inovação e produção cultural, e combate à pirataria com incentivos a propriedade intelectual. Confira cinco pontos sobre a Lei dos Jogos Eletrônicos:

O que muda?

1 - Torna os fluxos menos burocráticos e resguarda direitos e proteção de crianças e adolescentes

Ao longo dos anos, especialmente depois de tristes histórias de violências em escolas, ficou comum que alguns setores da sociedade culpabilizassem os games por influenciar negativamente os jovens. Os jogos - comprovados por diversas pesquisas -, podem sim ser aliados à educação e ao desenvolvimento. Entendendo isso, a Lei 14.852/2024 reforça  a aplicação protetora  da classificação etária indicativa fornecida pelo Ministério da Justiça, ampliando inclusive a necessidade de classificação também para jogos que promovam microtransações. A exemplo, o texto diz: "os riscos relacionados com a utilização de mecanismos de microtransações [SZP(1]  serão tidos em conta.(Art. 3º, §2º)

A questão da proteção da infância e adolescência ganha relevo especial no texto legal, ao reservar um capítulo inteiro para a proteção da criança e do adolescente (art. 15 a 17), incluindo "mitigar riscos aos direitos da criança e do adolescente que possam decorrer de sua concepção ou funcionamento" (art. 17, § 1º) e garantir a aplicação de salvaguardas em jogos voltados à criança e ao adolescente que possibilitem a interação entre os usuários por meio de texto, áudio,  mensagens de vídeo ou troca de conteúdo (Art. 18). Por fim, protege as crianças da exploração econômica maliciosa ao afirmar que "as ferramentas de compras dentro de jogos eletrônicos devem garantir a restrição de compras e transações comerciais realizadas por crianças por padrão, quando aplicável, garantindo o consentimento dos responsáveis". (Art.19)

Mesmo com estas adições, o texto legal busca também contribuir para simplificar o processo de desenvolvimento e publicação de jogos, prevenindo a criação de burocracia desnecessária pela legislação futura, afirmando que "não é necessária autorização estatal prévia para o desenvolvimento e exploração de jogos eletrônicos abrangidos por esta Lei" (art. 3º§1º)

Essas contribuições foram inspiradas por diversos especialistas, como a Dra. Ivelise Fortim, autora de "O que as famílias precisam saber sobre jogos: um guia para cuidadores de crianças e adolescentes", o Instituto Alana e a Dra. Lynn Alves, pesquisadora com mais de duas décadas de estudos realizados sobre jogos e educação.

2 - Possibilita fundos de inovação para jogos

Com a definição clara dos jogos como ferramenta de inovação, os investimentos feitos no setor passam a ser entendidos como tal nas leis que regem o investimento nesta área  no Brasil. Diante disso, o texto prevê:

Art. 11. Aplica-se às empresas desenvolvedoras de jogos eletrônicos, constituídas na forma do art. 7º desta Lei, o disposto na Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993.

Parágrafo único. Para fins do disposto no caput deste artigo, o investimento em desenvolvimento de jogos eletrônicos é considerado investimento em pesquisa, desenvolvimento, inovação e cultura

Em 2021, o Brasil aprovou o Marco Legal das Startups (Lei Complementar nº 182/2021), que determina em seu artigo 9º que "as empresas que tenham obrigações de investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação, ficam autorizadas a cumprir seus compromissos com o aporte de recursos em startups".

Vários dispositivos determinam obrigações, destacando-se a Lei de Informática (Lei 8.248/91), que permite isenção fiscal para empresas brasileiras produtoras de bens de TI, automação e telecomunicações. Essa Lei já gerou um investimento de contrapartida de US$ 2,48 bilhões [SZP(2)] em pesquisa e desenvolvimento entre 2006 e 2017 e, atualmente, mais de US$ 480 milhões são investidos em pesquisa, desenvolvimento e inovação por meio do dispositivo, segundo dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, responsável pela aprovação de projetos que utilizam esta ferramenta de fomento.

Agora, as empresas que se beneficiam desses aportes podem optar por pesquisa e desenvolvimento em jogos eletrônicos também. Isso inclui, por exemplo, fabricantes de consoles de jogos no Brasil. Empresas como a Samsung Brasil já investiram em ações semelhantes para jogos no Sidia, Instituto de Ciência e Tecnologia e Black River Studios. A TecToy, maior fabricante brasileira de eletrônicos, está ensaiando seu retorno triunfal no mundo dos games após ser a principal fabricante local de consoles nas primeiras gerações de consoles e tentar criar seu console proprietário, o Zeebo. A Lei 14.852/2024 vai estimular mais ações como essas.

3 - Incentivos fiscais à produção cultural

Os jogos estão institucionalizados como objeto de financiamento cultural desde 2011 pela portaria n 116 do MinC, incluindo o setor na principal ação brasileira de incentivos fiscais à cultura, a Lei Rouanet (nº 8.313/91). A lei funciona da seguinte forma: o produtor cultural apresenta um projeto, que é avaliado e, eventualmente, autorizado a captar recursos de isenção tributária. Na fase de captação de recursos, o produtor deve procurar pessoas físicas e jurídicas para investir uma parcela de suas contribuições no Imposto de Renda como doação ou patrocínio para apoiar o desenvolvimento desses projetos.

O problema é que há dois artigos nessa lei caracterizando quanto desse investimento na forma de doações ou patrocínios pode ser isento, e os jogos eletrônicos estão atualmente no mais desvantajoso. No artigo 26, é possível isentar apenas 30% a 40% de patrocínios e doações de empresas e de 60% a 80% de pessoas físicas. Disputando recursos de captação de recursos com outros setores culturais com mais visibilidade, acesso a recursos e contatos com empresas patrocinadoras (como shows musicais de grandes artistas), é praticamente impossível captar os recursos necessários.

A Lei 14.852/2024 passa a incluir a produção de jogos eletrônicos no artigo 18, no qual 100% da doação ou patrocínio pode ser isento de imposto de renda para pessoas físicas ou jurídicas até o limite de 6% e 4% do total do imposto devido. Com isso, a Lei Rouanet se torna oficialmente uma importante possibilidade de fundo para a produção de jogos. O valor máximo dos projetos na regulamentação da lei atual é de R$1 milhão, tornando-se um dispositivo potencialmente valioso para produtores independentes. Esse recurso é investido no produto como doação ou patrocínio, quando é necessário aplicar a marca do patrocinador na tela de abertura do jogo.

4 - Incentivos fiscais à produção audiovisual

A Agência Nacional do Cinema, Ancine, já promoveu editais de games e observou semelhanças inerentes entre o setor e outras cadeias audiovisuais em sua Análise de Impacto Regulatório publicada em 2016. No entanto, ainda não havia segurança jurídica em incluir o setor de games como beneficiário das mesmas disposições da lei primária do setor, a Lei do Audiovisual.

A Lei do Audiovisual (Lei 8.685/93) é uma lei brasileira que visa incentivar a produção e a coprodução de obras cinematográficas e audiovisuais e o desenvolvimento de infraestrutura para a produção e exibição dessas obras.

A Lei 14.852 modifica a Lei do Audiovisual, incluindo um novo artigo:

“Os contribuintes do Imposto de Renda incidentes sobre remessas ao exterior de remuneração decorrente da exploração de jogos eletrônicos ou de licenciamento decorrente de jogos eletrônicos no País poderão se beneficiar da redução de 70% (setenta por cento) do imposto devido, desde que invistam no desenvolvimento de projetos de produção ou coprodução de jogos eletrônicos independentes brasileiros. Novo artigo 3º-B da Lei do Audiovisual”

Isso significa que, quando uma editora como a Ubisoft ou uma plataforma como o Google Play envia pagamentos para o exterior relacionados à venda ou licenciamento de jogos, ela pode optar por investir 70% do imposto de renda devido no desenvolvimento de jogos brasileiros independentes. Não há impedimento para que essas mesmas editoras e plataformas explorem comercialmente esses produtos desenvolvidos, com consentimento e compartilhando os lucros com o produtor local, e mantendo mais de 50% dos direitos de propriedade intelectual com eles. É uma situação em que todos ganham: os investidores recebem um incentivo gratuito para gerar mais conteúdo em seu portfólio, e os criadores brasileiros vão receber uma oportunidade enorme, não apenas de investimento, mas de transferência de conhecimento e tecnologia.

O mercado brasileiro de games movimentou R$ 13 bilhões de reais em 2023, segundo a Newzoo. Com base na estimativa do imposto de renda devido nos lucros enviados ao exterior pela exploração desse mercado bilionário, uma avaliação preliminar nos permite projetar que o instrumento gere mais de R$ 500 milhões em investimento a produções locais nos próximos dez anos. Seguindo os resultados apontados pelo instrumento de incentivo fiscal do jogo na França (2012-2021), essa ação pode gerar ainda um retorno de R$ 900 milhões em receita tributária e potencialmente atrair R$ 4 bilhões em investimentos privados adicionais.

Observação: Este artigo foi objeto de veto pelo presidente e passará por análise para sua manutenção pelo Congresso Nacional em breve.

5 - Melhora a proteção da propriedade intelectual dos jogos

O último problema que a Lei 14.852/2024 resolve é o registro de propriedade intelectual. Até agora, o setor de games não tinha uma definição específica que incluísse o registro de suas obras no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). Uma pesquisa recente desenvolvida por Isabella Pimentel, mostra que o efeito da falta de definições mais precisas para a proteção de direitos é a baixa demanda por registros de jogos, suas marcas, nomes e personagens dentro da regulamentação vigente. Dada a complexidade de lidar com questões relativas à propriedade intelectual de jogos, esse é um primeiro passo para o Brasil melhorar as formas atuais de proteger os direitos dos criadores locais de jogos.

Este artigo é o terceiro da série dedicada à sanção do Marco Legal dos Games (Lei 14.852/2024). Para ler os demais, acesse:

https://revistaforum.com.br/debates/2024/4/30/entenda-marco-legal-dos-games-por-marcio-filho-pedro-zambon-158143.html

https://revistaforum.com.br/debates/2024/5/7/marco-legal-dos-games-pontos-de-impacto-no-setor-dos-jogos-por-marcio-filho-pedro-zambon-158468.html

*Márcio Filho é presidente da Associação de Desenvolvedores de Jogos Digitais do Rio de Janeiro (RING) e ocupa também o cargo de diretor executivo da GF Corp, uma empresa voltada para soluções gamificadas. Com uma trajetória sólida que abrange mais de duas décadas, destaca-se pelo seu engajamento social em defesa de políticas públicas voltadas para o setor de jogos, como na participação ativa na aprovação do Marco Legal dos Games. É especialista em games e sociedade, e atua diretamente no desenvolvimento de tecnologias potencializadoras da educação.

* Pedro Zambon é pesquisador e consultor de inteligência na indústria de games. Foi coordenador da Trilha de Indústria do Simpósio Brasileiro de Games (2016-2020) e membro do Conselho Nacional de Políticas Culturais (2019-2022). Doutor em Comunicação pela UNESP, é diretor da Savegame.dev empresa de capacitação e consultoria na área de games.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.