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Lei Aldir Blanc Rio 2020: registro da história que marcou nossas vidas e a cultura do Brasil

A comunicação pública tem esse dever. Em um momento de tanta dor, comunicar era cuidar e garantir comida na mesa de quem vivia do fazer artístico.

Créditos: Marcela Canéro
Escrito en DEBATES el

Marcela Canéro e Thiago Sales*

Este não é apenas um texto de ode ao passado, mas um testemunho vivo da potência que nasce quando a comunidade cultural reconhece a sua força. Em 2020, o Brasil mergulhou em uma crise sanitária sem precedentes. A pandemia da Covid-19 paralisou o país, silenciou os palcos, fechou museus, teatros, cinemas, esvaziou as ruas e interrompeu a fonte de sustento de milhares de trabalhadoras e trabalhadores das artes. A cultura, uma das primeiras áreas a ter suas portas fechadas, foi também uma das últimas a retomar as atividades presenciais. Nesse mesmo período, o setor ainda enfrentava o impacto do desmonte institucional que se seguiu à extinção do Ministério da Cultura, o que fragilizou as fontes de fomento, os sistemas de gestão e as políticas públicas que sustentavam a vida cultural brasileira.

Foi nesse contexto de colapso social e institucional que nasceu a Lei Aldir Blanc (LAB), concebida como um socorro emergencial a partir da mobilização de defensores da cultura, parlamentares aliados e uma intensa articulação da sociedade civil. A LAB foi, desde o início, um gesto coletivo de resistência: uma resposta construída a muitas mãos para que a cultura pudesse sobreviver, ainda que em meio às incertezas. Sua implementação, no entanto, representou um dos maiores desafios já vividos pela gestão cultural brasileira.

Na Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, enfrentamos a urgência com trabalho e criatividade. Em dois meses, conseguimos executar 99,9% dos recursos destinados ao município, um total de R$ 39,3 milhões, beneficiando 3.285 agentes culturais, entre artistas, grupos, espaços e instituições. Foram 1.508 beneficiários atendidos por subsídios diretos e 1.780 por meio de editais públicos. Distribuímos 358 prêmios de Ações Locais, 439 de Arte e Escola, 320 de Fomento a Todas as Artes, 563 de Preservação da Memória Técnica e 99 pareceristas. Ao final de 2020, 3.221 beneficiários já haviam recebido os valores creditados, restando apenas 64 processos reagendados conforme a Medida Provisória nº 1.019. Esses números, mais do que eficiência, expressam vidas e memória preservadas, redes de criação mantidas e histórias que não foram interrompidas.

Os recursos federais chegaram aos estados e municípios em outubro de 2020, com um prazo de apenas sessenta dias para empenhar, liquidar e pagar. Era o auge da pandemia, um período de isolamento, medo e luto, e a execução da lei coincidiu com o calendário eleitoral municipal, o que tornava o cenário ainda mais instável. Faltavam sistemas digitais eficazes, havia escassez de pessoal, indefinições jurídicas e fluxos administrativos desarticulados. Mesmo diante de tantas barreiras, precisávamos fazer. O compromisso público que nos movia era maior do que o cansaço, maior do que o medo de errar. Era a convicção de que a cultura não podia parar. Era garantir socorro a quem precisava.

Foi nesse cenário que entrei, Marcela, no processo contribuindo com a comunicação da Secretaria. A comunicação passou a ser a ponte urgente entre a política pública e quem faz cultura, o elo entre o Estado e a sociedade. Nosso papel era assegurar que as informações chegassem à ponta, em linguagem simples, acessível e inclusiva. Colocamos um site dedicado aos editais no ar em 24h, criamos transmissões ao vivo diárias explicando os editais, muitas vezes sem luz no prédio, suas etapas e prazos, respondemos a dúvidas em tempo real e produzimos conteúdos didáticos que tornassem compreensível o que, muitas vezes, era visto como distante ou técnico demais. Atuamos também junto à imprensa e aos grupos de WhatsApp, onde as redes culturais estavam mobilizadas, construindo ali uma comunicação direta e solidária. Em meio a governos hostis, conseguimos, com um esforço quase sobre-humano, executar em tempo recorde os repasses e a adesão dos fazedores de cultura.

Fizemos isso sem estrutura necessária e adequada, com poucos recursos e muito empenho. Cada live, cada card postado, cada atendimento presencial ou online era um gesto de cuidado em meio a tempos turbulentos. Acreditávamos, e seguimos acreditando, que o direito à informação é parte inseparável do direito à cultura. Quando a linguagem não alcança, o direito é negado. Quando a comunicação é clara e empática, o acesso se concretiza. A comunicação pública tem esse dever. Em um momento de tanta dor, comunicar era cuidar e garantir comida na mesa de quem vivia do fazer artístico. E foi nesse turbilhão, com as equipes cada vez menores, positivando Covid, nós em trabalho presencial, arriscando a nossa própria vida, que aprendi com Thiago o passo a passo de um edital, da concepção à entrega dos recursos, da importância de comunicar para quem não entenderia a burocracia que, infelizmente, ainda é exigida.

Para mim, Thiago Sales, que sou produtor cultural originário de um Ponto de Cultura, as dificuldades de recursos sempre foram, para além do desafio, uma forma de unidade e solidariedade do setor cultural. Durante a pandemia, essa mobilização coletiva se fortaleceu e foi ela que garantiu que os recursos chegassem de fato na ponta. A disputa por eles não pode nos separar. A Lei Aldir Blanc só foi possível porque estivemos juntos, não competindo por nossos próprios projetos, mas somando forças em uma verdadeira catarse coletiva, em busca de saúde financeira e também de saúde mental. Foi essa comunhão que nos manteve vivos e fez a cultura resistir.

E é assim que devemos seguir, cultivando a coletividade, fortalecendo a descentralização e construindo formas de comunicação cada vez mais ágeis e acessíveis, para que a cultura continue sendo um direito de todos e o fomento alcance quem mais precisa. Que sigamos com o mesmo espírito que nos uniu na adversidade, transformando limites em possibilidades e reafirmando, a cada passo, que a força da cultura está nas pessoas que acreditam, criam e fazem dela um caminho de vida.

Sabemos que editais são ferramentas de democratizar o acesso aos recursos, mas entendemos também que ainda não são o objetivo final, não são universalizantes. Mas, naquele momento, nosso universo era alcançar os milhares que estavam cadastrados para receber o recurso. E essa força-tarefa envolveu ir, em muitos casos, diretamente - às vezes pessoalmente -, em cada fazedor, coletivo, e explicar os procedimentos de forma humanizada e didática. Enquanto assistíamos as pessoas partir, tentamos incansavelmente, de mãos dadas, fazer nosso pequeno papel no setor cultural carioca. E que escola esses meses foram. Entrei comunicadora e saí um ser humano melhor, disposta a dedicar minha vida a melhorar esses fluxos e o direito à informação na cultura. Muito o que aprender e muito o que fazer.

A Lei Aldir Blanc provou que política pública cultural é uma força vital da sociedade e que a comunicação é o caminho que permite a efetivação das ações. Sem comunicação, os recursos não teriam chegado aos territórios, aos coletivos e às pessoas que mais precisavam dela. Foi esse trabalho conjunto, entre gestão e comunicação, que transformou uma lei emergencial em um movimento de reconstrução simbólica.
Nossa experiência e vivência foram locais, no Rio de Janeiro, mas sabemos que no Brasil todo houve o empenho de muita gente. Gestores, gestoras, fazedores e coletivos culturais enfrentaram desafios semelhantes e construíram soluções diversas, que juntas formaram uma rede nacional de resistência e difusão da informação, como o movimento “Emergência Cultural”. A Aldir Blanc, hoje reconhecida política de Estado, tornou-se a atual Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB). Não fomos nós que a geramos, mas fizemos parte do início dessa construção no Rio, junto a tantas outras gestões municipais e estaduais que provaram, naquele contexto, a potência da articulação federativa e da mobilização social em defesa da cultura.

Atualmente, a PNAB garante repasses anuais de até R$3 bilhões durante cinco anos, totalizando R$ 15 bilhões de investimento direto em estados e municípios. Em 2023, o primeiro ciclo beneficiou todas as 27 unidades federativas e 96,9% dos municípios brasileiros, com execução superior a R$ 2,9 bilhões. Aquilo que nasceu como um socorro emergencial, em meio ao colapso institucional e à ausência de um Ministério da Cultura, consolidou-se como uma política de Estado permanente, estruturante e participativa.

E essa história só foi possível porque, lá atrás, em um momento de medo e desamparo, havia pessoas dispostas a não desistir. E nós estivemos nessa frente, com empenho e dedicação. E quem estará nas trincheiras ao teu lado? Isso importa, mais do que a própria guerra (Hemingway). E seria impossível citar nomes aqui, de todos e todas que caminharam nesse desafio, por isso, deixamos o registro a toda equipe da SMC Rio 2020: foi graças a todos vocês que garantimos o direito à cultura em meio a governos hostis e uma crise sanitária.

A execução da Lei Aldir Blanc foi um marco de superação humana e institucional. Trabalhamos noites inteiras, muitas vezes em condições precárias, buscando soluções, aprendendo a cada nova dificuldade e buscando, sobretudo, o direito à cultura.  A gestão pública, naquele contexto, deixou de ser um exercício burocrático e se tornou uma experiência de compromisso ético. Fazer política pública em estado de emergência exigiu de nós, que estávamos em meio ao processo de gestão, princípios norteadores que sempre devem ser aplicados: empatia, escuta, dedicação, coragem e criatividade nas adversidades.

A experiência da Lei Aldir Blanc foi, acima de tudo, uma lição de humanidade. Mostrou que, mesmo em tempos de crise, é possível garantir o direito à cultura quando há vontade pública, articulação social e compromisso social. O que começou como emergência hoje é permanência.  A cultura resistiu e a comunicação foi sua voz.


*Thiago Sales é Gestor da Política Cultura Viva - RJ e Assessor-Chefe de Cultura e Sociedade da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro (SECEC/RJ). 

*Marcela Canéro é jornalista cultural e atua principalmente em reportagens voltadas para políticas culturais, movimentos sociais, literatura, mulheres, educação e políticas públicas.

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