A regulação das plataformas de streaming, tema há anos aguardado pelo setor audiovisual, está finalmente prestes a ser votada, em forma de aberração. O relatório do deputado Dr. Luizinho (PP-RJ) sobre o PL 8889/2017 é, ao mesmo tempo, tecnicamente inconsistente e politicamente perigoso. Sob o pretexto de modernizar a tributação, ele esvazia o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e entrega às próprias plataformas o poder de decidir o que é fomento cultural no Brasil.
O texto mantém a Condecine dentro da MP 2.228-1/2001, mas omite o essencial: a destinação obrigatória dos recursos ao FSA, que é o instrumento público de fomento do audiovisual. Essa omissão, longe de ser um detalhe, abre caminho para o desmonte do sistema de financiamento público que garantiu, nas últimas duas décadas, a pluralidade de vozes e a descentralização da produção nacional.
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O relator reduziu a alíquota de 6%, que constava no relatório da deputada Jandira Feghali, para apenas 4%, criou uma categoria especial de 2% para plataformas de compartilhamento e, como se não bastasse, ampliou o desconto de 60% para 70% — permitindo que as plataformas decidam onde investir essa fatia e ainda utilizem suas próprias produções realizadas no Brasil como forma de abatimento fiscal.
Vale lembrar que o setor defende uma alíquota de até 12% — percentual fundamentado na Moção nº 1/2024 do Conselho Superior de Cinema — com a maior parte dos recursos destinada ao FSA, assegurando o fomento público, a diversidade regional e a autonomia da produção independente.
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E o enredo fica ainda mais surreal: a Condecine já foi rebaixada de 6% para 4%.
Desse valor, 70% pode ser deduzido pelas próprias plataformas — ou seja, elas “investem” nelas mesmas e ainda chamam isso de fomento.
Dos 30% restantes (1,2% da receita bruta) que teoricamente iriam para o Estado, até 30% pode ser sugado pela DRU (Desvinculação das Receitas da União) — um mecanismo que permite ao governo federal redirecionar parte dos fundos públicos para outras finalidades.
E o que sobra nem está garantido ao FSA, já que o relator simplesmente “esqueceu” de reafirmar essa vinculação.
Resultado final: o que de fato chega ao Fundo Setorial do Audiovisual pode ser menos de 1% da arrecadação total.
Um negócio da China — ou melhor, do Vale do Silício.
E, como em toda boa trama neoliberal, vem o plot twist final: o relatório transforma um tributo público em um subsídio corporativo, permitindo que as gigantes do streaming se autofinanciem com o próprio imposto que deveriam recolher. Um mecanismo que, em vez de fortalecer o fomento público, consagra a privatização da política cultural brasileira.
Entre os escândalos mais graves, está a eliminação do conceito de produtora brasileira independente — o eixo que sustenta toda a política pública do audiovisual. Sem essa definição, desaparece a fronteira que distingue o interesse público do controle corporativo. A consequência é direta: as majors passam a poder operar sob o mesmo status das produtoras nacionais, capturando os recursos e esvaziando a autonomia criativa do país.
Essa distorção se repete em outros pontos. A cota de catálogo nacional, que deveria garantir visibilidade e espaço real para as obras brasileiras, foi fixada em apenas 10% — e, pior, com uma brecha escandalosa: as plataformas que tiverem mais de 700 títulos brasileiros, sendo metade independentes, ficam dispensadas da regra proporcional. Basta empilhar conteúdos antigos e de baixo custo para se livrar da obrigação. Um mecanismo perfeito de dumping cultural. Hoje, com cerca de 8,5% de obras brasileiras nas plataformas, já mal encontramos nossos filmes e séries.
O relatório ainda “cria” cotas regionais — 30% para o Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e 20% para áreas menos desenvolvidas do Sul e Sudeste. Bonito no papel, mas inócuo na prática: essas cotas só incidem sobre o valor que sobra após as deduções privadas. Se até 70% da arrecadação for abatida, o que chega ao fundo público pode ser uma fração mínima.
Como se não bastasse, o texto ainda abre brecha para que as plataformas remunerem criadores e influenciadores com o próprio tributo, transformando a Condecine em marketing digital disfarçado de política cultural.
É o mesmo truque aplicado à “formação e capacitação de mão de obra”: o texto inclui o tema como item dedutível, limitado a 1% a 3% do valor abatido — o que significa que “formação” deixa de ser política pública e passa a ser rubrica contábil, usada como vitrine pelas próprias plataformas. Não há diretrizes pedagógicas, nem critérios de inclusão, nem metas regionais. É o tipo de “capacitação” que ensina a reproduzir padrões estéticos importados, em vez de fortalecer a linguagem e o pensamento audiovisual brasileiros. Formação não é política tributária — é política de Estado.
O resultado é devastador: o relatório privatiza o fomento, rebaixa a ANCINE à função de homologar investimentos privados e substitui o papel do Estado pela lógica das corporações globais.
No lugar de uma política cultural soberana, o país ganha uma planilha de renúncia fiscal — onde as big techs escolhem o que produzem, o que exibem, quem treinam e, agora, quanto pagam de imposto.
Não é apenas um erro técnico: é um ataque direto à soberania cultural. A Condecine, enquanto CIDE, tem destinação constitucionalmente vinculada ao interesse público. Desviar seus recursos para investimentos privados fere o princípio da legalidade tributária, rompe a impessoalidade e retira da sociedade o controle sobre um bem coletivo: o audiovisual brasileiro.
Diante desse cenário, o que se espera do Ministério da Cultura é liderança, em uma posição firme e propositiva. Desde que o relatório passou às mãos do relator, o MinC manteve uma postura tímida — e, pior, vem defendendo um modelo que repete a mesma lógica privatista, permitindo 60% de dedução e apenas 40% ao FSA. O dever do Estado é outro: proteger a política pública, não negociá-la. A soberania cultural se defende fortalecendo o FSA, não fragmentando-o.
O Brasil precisa escolher de que lado está.
Ou reafirmamos o papel do Estado como garantidor do fomento público, com recursos majoritariamente destinados ao FSA, ou aceitamos a submissão definitiva às regras das big techs, que já concentram poder econômico, narrativo e simbólico sobre o audiovisual do país.
A votação desse projeto é mais do que uma disputa técnica.
É o teste decisivo sobre quem controla o imaginário brasileiro: o Estado democrático, através de políticas públicas de fomento, ou as corporações estrangeiras, através da lógica do lucro e do algoritmo.
Sem soberania cultural, não há soberania nacional.
É hora de o Congresso e o governo escolherem de que lado da história querem estar.