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Do Éden ao Rio: A tragédia brasileira da desigualdade - Por Eduardo Matysiak

O luto que irrompe diariamente das comunidades, o pranto ininterrupto das mães pela perda de seus "filhos de Marias e de Josés", é o sintoma agudo da falência crônica do pacto social

Créditos: Mauro Pimental / AFP
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O Rio de Janeiro, território cindido entre o cartão-postal e a miséria social, expõe o colapso moral de uma nação. A cidade, espelho de utopia, transformou-se em um foco de cinismo onde vidas vulneráveis são tratadas como meras estatísticas. A violência endêmica que assola o estado não é um desvio de conduta, mas a manifestação implacável da profunda desigualdade estrutural.

O luto que irrompe diariamente das comunidades, o pranto ininterrupto das mães pela perda de seus "filhos de Marias e de Josés", é o sintoma agudo da falência crônica do pacto social. A repetição dessa tragédia impõe uma única pergunta: até quando seremos reféns desse ciclo destrutivo e indiferente?

A brutalidade da realidade carioca encontra um paralelo direto na história real que inspirou o filme Eden (2025), dirigido por Ron Howard. A tentativa de fundar uma utopia perfeita nas ilhas Galápagos fracassou em face do conflito, da vaidade e do mistério, provando que, no cerne, a degeneração humana nos revela como meros animais sociais. É o ego que silencia a razão. Onde a ambição individual e o desejo de poder prevalecem, a barbárie prospera. Nossa "tragédia do rio" reflete um sonho de justiça dissolvido no cinismo da elite e alimentado pelo abismo social.

O número chocante de vítimas chancela o fracasso do modelo de segurança pública focado apenas na repressão e na guerra. Expressões de desumanização, como a que trata cidadãos vulneráveis pelo eufemismo para execuções sumárias, revelam o ápice da indiferença social.

A questão central é a desigualdade profunda e histórica do Rio de Janeiro – a "espinha do problema". O estado se mantém entre os de maior concentração de renda do país (quarto maior índice em 2024). Essa segregação é territorial: a vasta Zona Oeste, que concentra 41% da população, sofre cronicamente com a carência de serviços essenciais. O poder público chega a essas áreas prioritariamente "somente com uma arma", permitindo que milícias e facções criminosas prosperem no vácuo. Essa é a face mais cruel da degeneração humana brasileira e da omissão governamental.

A desigualdade possui uma dimensão racial incontornável. A população das favelas e periferias é majoritariamente negra (cerca de 67%), e é sobre ela que recai o peso total da violência estatal. A proporção de negros mortos pela polícia é alarmante, chegando a mais de 90% dos vitimados em algumas áreas. O racismo estrutural transforma a desigualdade econômica em desigualdade letal. A letalidade policial viola direitos humanos, ignorando diretrizes do Supremo Tribunal Federal (STF). A Defensoria Pública tem criticado o aumento de mortes, sustentando que ações de segurança não podem resultar em execuções sumárias em comunidades excluídas. É mais uma evidência do ego que silencia a razão na concepção das políticas de segurança.

A violência custa caro, e não apenas em vidas. Estudos indicam que ela faz a economia do Rio perder até R$ 11,48 bilhões por ano. Esse recurso, consumido pelo ciclo da criminalidade, deveria ser urgentemente investido em educação de base e infraestrutura urbana. A desigualdade também é medida em tempo de vida: moradores de favelas chegam a viver 29 anos a menos do que habitantes de áreas nobres. A crise é, fundamentalmente, de liderança e de prioridades. O embate político se sobrepõe à urgência humanitária, transformando a segurança em palanque eleitoral. A ausência de um plano estratégico de Estado que ataque a desigualdade na raiz assegura a perpetuação do caos.

Para interromper este ciclo de morte e degradação, é crucial garantir a todos dignidade e oportunidades reais. Isso exige um novo paradigma baseado em soluções estruturais comprovadas. Medellín, na Colômbia, por exemplo, demonstrou que investir em mobilidade urbana integrada (com teleféricos conectando áreas periféricas ao centro) e infraestrutura social de alta qualidade (parques biblioteca) em áreas violentas reduz drasticamente os índices de criminalidade, unindo a cidade física e socialmente.

Esse é o caminho: investimento massivo em infraestrutura social para desfazer o Muro da Desigualdade; educação integral e profissionalizante para oferecer uma rota de ascensão social concreta; segurança pública cidadã para substituir a repressão cega por policiamento de proximidade e inteligência, com respeito inegociável aos direitos humanos; e política de renda e emprego para incentivar a geração de riqueza localmente.

Assim como o Éden se perdeu pela soberba humana, o Rio sucumbe pela indiferença coletiva.

O paraíso prometido só se tornará real quando o amor pesar mais que o medo.

*Eduardo Matysiak é fotojornalista premiado na categoria Lockdown do Brasília Photo Show, o maior festival de fotografia da América Latina e considerado o “Oscar da Fotografia”. Suas obras foram publicadas em jornais do Brasil e do mundo. Sua atuação combina o ativismo social com a expertise em consultoria parlamentar, utilizando a fotografia como ferramenta incisiva de crítica e documentação.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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