ANÁLISE

Reforma Administrativa: a modernização que ameaça o serviço público – Por Danilo Tavares

A ideia de que o Estado é inchado e ineficiente não encontra respaldo em comparações internacionais

Plenário da Câmara.Créditos: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados
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O que é a PEC 32

A Proposta de Emenda Constitucional 32/2020, conhecida como Reforma Administrativa, foi apresentada pelo governo federal em 2020 (Jair Bolsonaro) e é defendida por partidos do centrão e da direita como uma modernização do Estado. O texto propõe mudanças nas regras de contratação, estabilidade e avaliação de servidores. Segundo seus defensores, o objetivo é tornar o serviço público mais eficiente e menos oneroso.

Mas análises técnicas e dados orçamentários apontam o contrário: os maiores privilégios permanecem intocados, enquanto a base do funcionalismo — que sustenta os serviços essenciais — seria a mais afetada.

Quanto custam os “supersalários”

R$ 10 bilhões: Foi o gasto estimado, em 2024, com remunerações acima do teto constitucional, segundo levantamento do Congresso em Foco. Em dez anos, o custo com servidores de elite do Judiciário, Ministério Público e Legislativo dobrou, de acordo com dados do Estadão Dados.

A PEC 32 não altera essas remunerações. Pelo contrário, foca na base — professores, técnicos, médicos e enfermeiros — que já são mal remunerados e deixa de fora as carreiras de topo.

Mito da eficiência

A ideia de que o Estado é inchado e ineficiente não encontra respaldo em comparações internacionais. O gasto com servidores, em relação ao PIB, é semelhante ao dos Estados Unidos e menor que o de várias economias europeias. O problema é distributivo: altos salários concentrados no topo e escassez de recursos na base.

Para o economista Douglass North, mudanças que não enfrentam essas distorções acabam sendo simbólicas. No caso da PEC 32, a reforma mantém privilégios e penaliza quem atua na linha de frente do serviço público.

“Reformas que ignoram os ‘nós duros’ da desigualdade institucional tendem a fracassar”.

— Douglass North, economista, em Institutions, Institutional Change and Economic Performance (1990).

A estabilidade em risco

A PEC 32 restringe a estabilidade a carreiras “típicas de Estado”, como diplomatas e auditores. Professores, médicos, policiais e enfermeiros ficariam vulneráveis à demissão e à rotatividade. Max Weber, em “Economia e Sociedade”, descreve a estabilidade funcional como pilar da burocracia moderna, essencial para evitar o patrimonialismo — a confusão entre o público e o privado. A retirada dessa proteção abre espaço para clientelismo político e descontinuidade de políticas públicas.

Impacto direto:

Para os servidores: perda de direitos e insegurança no trabalho.

Para os cidadãos: deterioração dos serviços públicos e aumento da desigualdade social.

Um Estado que preserva o topo

Enquanto professores da rede pública ganham em média R$ 4 mil, juízes e procuradores recebem, com benefícios, mais de R$ 100 mil mensais. O economista francês Thomas Piketty define essa disparidade como captura do Estado pelas elites. Já Mancur Olson, em The Logic of Collective Action (1965), explica que grupos pequenos e organizados conseguem bloquear reformas que afetem seus interesses sobre políticas públicas do que grandes grupos dispersos.

A PEC 32 segue esse padrão: atinge os vulneráveis e poupa os poderosos.

O papel do relator

O deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) é o relator da proposta. Ele votou a favor da Reforma Trabalhista (2017) e da Reforma da Previdência (2019). A escolha mantém coerência política: apoiar projetos que reduzem o papel social do Estado e favorecem a agenda fiscal de elites econômicas contra a base social trabalhadora do país.

Democracia em risco

O cientista político Guillermo O’Donnell definiu a estrutura organizacional estável como barreira contra a captura política. Bo Rothstein, em The Quality of Government (2011), demonstrou que países com estruturas profissionais têm menos corrupção e mais confiança institucional. Ao flexibilizar vínculos e abrir espaço para contratações temporárias, a PEC 32 enfraquece o serviço público e a própria democracia.

Entre modernização e retrocesso

O Brasil precisa de uma reforma administrativa — mas não desta. Uma reforma efetiva deveria:

1-combater supersalários e verbas indenizatórias;

2-valorizar a base do funcionalismo;

3-garantir estabilidade técnica e impessoalidade no serviço público.

A PEC 32 faz o oposto. Apresentada como “modernização”, aprofundaria desigualdades e enfraqueceria a estrutura do Estado brasileiro. E defender o serviço público não é uma pauta corporativa. É defender o interesse coletivo e o equilíbrio democrático.

Fontes e referências

Fontes teóricas:

NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge University Press, 1990.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999.

SEN, Amartya. Development as Freedom. Oxford University Press, 1999.

PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

OLSON, Mancur. The Logic of Collective Action. Harvard University Press, 1965.

O’DONNELL, Guillermo. Democracia, Agência e Estado. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

ROTHSTEIN, Bo. The Quality of Government. University of Chicago Press, 2011.

Fontes jornalísticas:

Congresso em Foco. “Supersalários custam R$ 10 bilhões em 2024.” Brasília, 12 jan. 2024.

Estadão Dados. “Gastos com servidores de elite dobram em uma década.” São Paulo, 8 fev. 2024.

Fonte normativa

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020. Câmara dos Deputados.

*Danilo Tavares (@danilotavaressol) é produtor cultural, funcionário público municipal e secretário de comunicação do PSOL de São Vicente, além de membro do Conselho de Economia Solidária de São Vicente e do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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