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Os algoritmos e a criação da realidade digital: o que você vê não é acidental - por Keffin Gracher

O que consumimos online não é fruto da nossa liberdade de escolha, mas de filtros algorítmicos que atendem a interesses econômicos e políticos

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Imagine receber um jornal feito só para você, com notícias que reforçam suas crenças e debates com os quais já concorda. Parece conveniente, mas também perigoso, certo? Essa é a lógica dos algoritmos das redes sociais. Eles não apenas mostram o que você quer ver, mas também decidem, sem que você perceba, o que você não verá. E esse é o verdadeiro perigo. A promessa de um espaço democrático na internet esconde um mecanismo de controle invisível, cujos parâmetros são definidos pelos proprietários dessas empresas. O que consumimos online não é fruto da nossa liberdade de escolha, mas de filtros algorítmicos que atendem a interesses econômicos e políticos.

As redes sociais não são neutras. Elas moldam nossa percepção da realidade, reforçam vieses e limitam o debate público. Mais do que isso, são um terreno fértil para a mentira, diluída sob o termo “fake news”. No artigo Fake News ou Mentira? Como a Linguagem Normaliza a Manipulação Política, abordei como essa expressão suaviza o problema. Aqui, o foco é como os algoritmos não apenas distribuem desinformação, mas também a amplificam, transformando a mentira em estratégia política e econômica.

Os algoritmos são curadores invisíveis, definindo o que vemos e moldando nossa percepção de mundo. Eles não priorizam a verdade, mas sim o engajamento. Embora possam ser usados para personalizar conteúdos úteis, o problema surge quando operam sem transparência e priorizam lucros acima do bem-estar coletivo. O que viraliza não é o que é verdadeiro, mas o que gera mais cliques.

A estrutura das redes sociais criou um espaço onde a impunidade impera. No mundo físico, uma pessoa que difama pode ser processada ou até mesmo agredida. No entanto, no ambiente digital, a possibilidade de anonimato e a sensação de "falar com a tela" criam um distanciamento que alimenta a ideia de impunidade. Apesar de avanços importantes, como o Marco Civil da Internet, que estabelece direitos e deveres no uso da rede, ainda há muito a ser feito para garantir que as leis acompanhem a complexidade do ambiente digital e responsabilizem adequadamente aqueles que abusam desse espaço.

Michel Foucault argumentava que o poder moderno não opera apenas por repressão direta, mas pela estruturação do que pode ou não ser dito. Essa lógica se manifesta nas redes sociais, onde os algoritmos decidem quais discursos são amplificados ou silenciados, conforme os interesses das plataformas. O controle informacional não é mais explícito como na censura tradicional, mas sutil e invisível.

Isso impacta diretamente a formação da opinião pública. Noam Chomsky denunciava como os meios de comunicação moldam ideias para favorecer determinados interesses. Hoje, as redes sociais substituíram os jornais nesse papel, mas de forma automatizada e obscura. O que ganha visibilidade não é decidido por jornalistas que assinam matérias, mas por códigos programados pelos seus donos para maximizar engajamento e lucro.

Karl Marx já dizia: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes.” No capitalismo digital, isso se agrava. As grandes plataformas não apenas controlam a circulação da informação, mas também influenciam decisões políticas globais. O escândalo da Cambridge Analytica mostrou como as redes sociais foram usadas para manipular eleições, explorando medos e preconceitos para influenciar decisões eleitorais. Durante as eleições de 2016 nos EUA, um estudo do Oxford Internet Institute apontou que 25% dos tweets políticos continham desinformação. Mesmo assim, a regulamentação desse cenário avança a passos lentos.

Sem regras claras, reina a incerteza. Émile Durkheim definiu anomia como um estado de ausência de normas, gerando desorientação coletiva. Fake news, teorias da conspiração e discursos de ódio prosperam porque não há consenso sobre o que é real. Nesse ambiente, a fragmentação da verdade gera polarização extrema, tornando o debate público refém de versões manipuladas. A crise de confiança atinge a imprensa, a ciência e os especialistas, favorecendo aqueles que lucram com a dúvida e a radicalização.

Nesse cenário, os próprios usuários têm um papel crucial. Ao consumir e compartilhar conteúdos sem verificar sua veracidade, contribuem para a amplificação da desinformação. A educação midiática e o pensamento crítico são fundamentais para reduzir essa dependência de curadorias algorítmicas.

Manuel Castells explica que o poder na sociedade contemporânea está nas redes de comunicação. No passado, controlar a informação significava ter jornais, rádios e TVs. Hoje, a questão não é quem produz a informação, mas quem controla sua distribuição. As redes sociais permitem que qualquer um publique conteúdos, mas, ao decidirem o que ganha alcance, tornam-se a nova estrutura de poder.

O problema central é que essa curadoria não é pública nem transparente. Diferente de um jornal com editores responsáveis, os algoritmos operam sem prestar contas à sociedade. Assim, o debate público é filtrado por sistemas que priorizam o lucro das plataformas, sem que os cidadãos tenham qualquer controle sobre isso.

Diante desse problema, o que pode ser feito? Algumas iniciativas já estão em debate. A União Europeia aprovou o Digital Services Act, obrigando plataformas a divulgar como seus algoritmos funcionam e a remover conteúdos ilegais de forma mais eficiente. No entanto, ainda há desafios, como a proteção de segredos comerciais e a auditoria de sistemas de IA. Além disso, a educação midiática precisa ser integrada aos currículos escolares, ensinando verificação de fatos e análise crítica de informações. Também é necessário repensar os modelos de negócio das plataformas, que priorizam o lucro a qualquer custo.

Embora iniciativas regionais sejam importantes, a regulação precisa ser global. As plataformas operam além das fronteiras, afetando milhões de usuários. Um marco regulatório internacional, discutido por organizações multilaterais, pode ser um caminho para garantir direitos digitais em escala global.

Os algoritmos moldam nossa visão de mundo, mas sua falta de transparência coloca a democracia em risco. Precisamos reconhecer que as redes sociais não são neutras: foram projetadas para manipular tempo, atenção e percepções. E, nesse ecossistema, a mentira se fortalece. Como já discuti, o termo “fake news” suaviza essa realidade. Não se trata apenas de notícias falsas, mas de um sistema que fomenta e distribui mentiras como estratégia de controle e manipulação.

A pergunta que fica é: vamos continuar aceitando essa realidade programada ou exigiremos mudanças?

*Keffin Gracher é jornalista e cientista social. Coordena projetos de comunicação digital, com foco em governos e campanhas eleitorais. No governo da presidenta Dilma Rousseff, foi diretor de Internet, responsável pela presença digital do Governo Federal.

Leia: Fake News ou mentira? Como a linguagem normaliza a manipulação política – Por Keffin Gracher

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