ANÁLISE

Como Política Nacional Aldir Blanc redesenha mapa cultural brasileiro – Por Daniel Samam

Revolução Silenciosa: Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (Lei 14.399/2022) surge como resposta a antigos dilemas do setor

Lançamento da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB).Créditos: Filipe Araújo/MinC
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O Brasil, país de dimensões continentais e diversidade cultural incomparável, sempre enfrentou um paradoxo fundamental na perspectiva da política pública de cultura: como financiar sua riqueza simbólica em meio à histórica instabilidade orçamentária do setor cultural? Por décadas, o financiamento da cultura oscilou entre a dependência de leis de incentivo fiscal — que privilegiavam grandes centros e projetos de apelo comercial — e políticas pontuais, desconectadas de um projeto nacional. Esse cenário criou um país de contrastes culturais, onde as metrópoles concentravam recursos enquanto municípios menores permaneciam à margem das políticas públicas.

A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (Lei 14.399/2022) surge como resposta a esse dilema histórico, posicionando-se não apenas como um mecanismo de emergência pós-pandemia, mas como verdadeiro alicerce do Sistema Nacional de Cultura (SNC - Lei 14.835/2024). Seu papel transcende a simples injeção de recursos: trata-se de uma reforma silenciosa, capaz de redefinir as relações entre União, estados e municípios na gestão cultural brasileira, democratizando o acesso aos meios de produção e fruição cultural.

Ao garantir R$ 15 bilhões em cinco anos, com repasses obrigatórios e descentralizados, a Política Nacional Aldir Blanc rompe com a lógica centralista que dominou o financiamento cultural brasileiro por décadas. Esse montante, ainda que insuficiente diante das imensas demandas do setor, cria uma base previsível para que estados e municípios possam, finalmente, planejar ações estruturantes, como a reforma de equipamentos culturais, a formação de agentes locais e a manutenção de programações contínuas.

A verdadeira inovação da Política Nacional Aldir Blanc, contudo, está nas suas condicionalidades: para receber novos repasses, os entes federativos precisam comprovar a execução de pelo menos 60% dos recursos anteriores e criar fundos próprios de cultura. Essa regra, criticada por alguns gestores como "excessivamente rígida", é justamente o que diferencia a Política Nacional Aldir Blanc de políticas assistencialistas do passado. Ela impõe uma cultura de planejamento e continuidade, obrigando governos a saírem da inércia e a institucionalizarem estruturas permanentes, como conselhos paritários e planos plurianuais de cultura.

Em municípios com menos de 5 mil habitantes, a Política Nacional Aldir Blanc representa uma verdadeira revolução. Antes dela, a verba cultural nessas localidades muitas vezes se limitava a eventos pontuais, como festas juninas ou comemorações cívicas. Hoje, esses municípios podem destinar até 20% dos recursos para infraestrutura básica — como reformar bibliotecas abandonadas ou instalar pontos de internet em praças públicas —, algo vital para territórios onde o acesso à cultura ainda é mediado por estradas de terra e ausência de equipamentos culturais adequados.
Contudo, o desafio persiste: muitos municípios sequer possuem equipes técnicas capacitadas para elaborar projetos ou prestar contas dos recursos recebidos. É aqui que o Sistema Nacional de Cultura - SNC mostra sua importância complementar. A exigência de fundos e conselhos municipais, ainda que inicialmente percebida como burocrática, força a formação de uma "arquitetura institucional mínima", capacitando gestores e envolvendo a sociedade civil no processo decisório cultural.

Participação social: A espinha dorsal da Política Nacional Aldir Blanc

Um dos aspectos mais inovadores da Política Nacional Aldir Blanc é seu compromisso estrutural com a participação social. De acordo com o Marco Regulatório do Sistema Nacional de Cultura - SNC (Lei nº 14.835/2024), os Conselhos de Cultura são os espaços formais de articulação, deliberação e pactuação com a sociedade civil das diretrizes para a aplicação de recursos públicos na área cultural. Na Política Nacional Aldir Blanc, o envolvimento desses Conselhos nos processos de construção do Plano de Aplicação de Recursos (PAR) não é apenas recomendado, mas obrigatório para o recebimento dos recursos.

Esta obrigatoriedade representa uma mudança paradigmática na gestão cultural brasileira. Para os entes que ainda não possuem Conselhos constituídos, a Portaria MinC nº 200/2025 estabeleceu uma alternativa: a realização de assembleias gerais com agentes e fazedores de cultura do território. Essa exigência garante que, mesmo em localidades onde a institucionalidade cultural ainda é incipiente, a voz da comunidade cultural seja ouvida e considerada na destinação dos recursos.

A experiência do primeiro ciclo da Política Nacional Aldir Blanc (2023-2024) já demonstrou que os processos participativos mais bem-sucedidos combinam diferentes metodologias de escuta. Alguns estados se destacaram por realizar diversos tipos de consultas públicas em vários territórios e com diferentes segmentos culturais. Outros entes combinaram formulários na internet com escutas presenciais ou híbridas, ampliando o alcance da participação. Há ainda casos exemplares onde foram realizadas reuniões de devolutivas para que a comunidade cultural ou o Conselho validasse o plano sistematizado pela gestão após as escutas iniciais.

Um aspecto crucial para a efetividade desses processos é o registro e a sistematização das propostas debatidas. Conforme estabelece o artigo 22 da Portaria nº 200/2025, as atividades de participação social devem ser registradas em atas, fotos, vídeos e demais formas de documentação, sendo encaminhadas ao Ministério da Cultura juntamente com o PAR. Essa exigência vai além da mera formalidade burocrática: ela permite avaliar a real incidência da participação social na formulação das políticas culturais locais.

A sistematização adequada das propostas priorizadas pelos setores consultados é fundamental para que o PAR reflita genuinamente as demandas da sociedade civil. No monitoramento do ciclo anterior da Política Nacional Aldir Blanc, observou-se que diversos entes enviaram atas de consultas sem a devida sistematização das prioridades estabelecidas, o que prejudicou a avaliação do impacto real da participação social na política. Para superar esse desafio, recomenda-se o estabelecimento de critérios claros que permitam visualizar de forma simplificada as atividades priorizadas nas consultas públicas.

Transparência e tecnologia: O novo Painel de Dados da Política Nacional Aldir Blanc

Outro avanço significativo na implementação da Política Nacional Aldir Blanc foi o lançamento, em abril de 2025, do novo Painel de Dados da Política Nacional Aldir Blanc pelo Ministério da Cultura. Esta ferramenta representa um salto qualitativo na transparência e no controle social da política pública, oferecendo uma experiência mais intuitiva, acessível e interativa para gestores e cidadãos.

A principal inovação tecnológica do painel é sua integração com a interface de programação do TransfereGov. Esta integração permite que os dados sejam atualizados automaticamente: diariamente, nas seções de adesão e resumo executivo, e mensalmente, na execução financeira. Essa atualização constante transforma o painel em uma ferramenta dinâmica para o acompanhamento em tempo real da política cultural, superando o modelo estático de prestação de contas que historicamente caracterizou o setor.

Entre os recursos inéditos, destaca-se o "resumo executivo", onde qualquer cidadão pode pesquisar um ente federativo específico e visualizar, em uma única tela, informações completas sobre adesão, execução financeira e dados sobre o envio do PAR. Esta funcionalidade democratiza o acesso à informação, permitindo que mesmo pessoas sem conhecimento técnico possam monitorar a implementação da política em seu território.

Talvez a inovação mais revolucionária seja a disponibilização dos extratos bancários das contas utilizadas pelos entes federativos para execução dos recursos. Esta funcionalidade permite visualizar, de forma detalhada, todos os lançamentos de entrada e saída das contas correntes, identificando quem recebeu os valores, quanto recebeu e quando. Trata-se de um nível de transparência ativa sem precedentes na gestão cultural brasileira, que eleva significativamente o potencial de controle social sobre os recursos públicos.

O novo painel também consolida as informações dos dois ciclos da Política Aldir Blanc — Ciclo 1 (adesão e repasse em 2023/2024) e Ciclo 2 (adesão 2025) — em um único ambiente de consulta, com filtros que facilitam a comparação entre períodos e o acompanhamento da evolução da política. Esta visão integrada permite análises mais sofisticadas sobre o impacto da Política Nacional Aldir Blanc ao longo do tempo, possibilitando ajustes e aperfeiçoamentos baseados em evidências.

Não menos importante é a atenção dada à acessibilidade e usabilidade do painel. A navegação agora é feita por guias intuitivas e responsivas, funcionando de forma eficiente em computadores e, futuramente, em dispositivos móveis. Estas melhorias atendem a uma demanda recorrente de gestores culturais e da sociedade civil, tornando a ferramenta acessível a diferentes perfis de usuários: estudiosos, técnicos, gestores públicos, produtores culturais e cidadãos interessados no controle social.

Esta evolução tecnológica da Política Nacional Aldir Blanc demonstra como a política está se adaptando e se aperfeiçoando continuamente, respondendo às demandas da sociedade e incorporando princípios de governo aberto e participativo. O novo painel não é apenas uma ferramenta de prestação de contas, mas um instrumento de cidadania cultural que potencializa a participação e o controle social na gestão da política pública.

Desafios e perspectivas

Apesar dos avanços inegáveis, a Política Nacional Aldir Blanc enfrenta desafios significativos. Alguns estados argumentam que a exigência de contrapartida orçamentária penaliza estados em crise fiscal, criando um paradoxo: justamente os territórios mais necessitados de investimentos culturais seriam os menos capazes de acessar os recursos federais. Outros gestores apontam que a pressão por execução rápida (60% em um ano) pode levar a gastos pouco estratégicos, como eventos efêmeros em vez de investimentos em formação e infraestrutura duradoura.

São riscos reais, mas que não invalidam o modelo proposto pela Política Nacional Aldir Blanc. Pelo contrário: revelam a necessidade de ajustes e aperfeiçoamentos, como a criação de um fundo de equalização para entes federativos em dificuldade financeira ou a ampliação de prazos para municípios menores, que enfrentam maiores desafios de execução. A política pública, afinal, é um organismo vivo que deve se adaptar às realidades encontradas no território.

A maior ameaça à Política Nacional Aldir Blanc, porém, não é técnica, mas política. A política foi aprovada com validade até 2027. O que acontecerá depois? Se depender apenas da boa vontade de governos futuros, corremos o risco de voltar à instabilidade crônica que sempre caracterizou o financiamento cultural no Brasil. Por isso, a vinculação da Política Nacional Aldir Blanc ao Sistema Nacional de Cultura é essencial: ao integrar seus princípios a um sistema permanente, cria-se uma rede de proteção contra desmontes e retrocessos.

É fundamental compreender que a Política Nacional Aldir Blanc não é uma política de governo, mas de Estado — e seu sucesso depende do engajamento social. Os Conselhos de Cultura, com participação paritária entre governo e sociedade civil, são peças-chave nesse processo, pois o controle social é vital para evitar que os recursos sejam captados por interesses particulares ou utilizados como moeda de troca política.

O novo Painel de Dados da Política Nacional Aldir Blanc representa um passo importante nessa direção, fornecendo ferramentas concretas para que coletivos artísticos e organizações culturais possam pressionar por transparência e efetividade na aplicação dos recursos. A disponibilização de extratos bancários e a atualização automática dos dados elevam significativamente o potencial de controle social, permitindo que a sociedade civil monitore não apenas quanto foi gasto, mas como e com quem os recursos foram aplicados.

Em um país onde 70% dos municípios nunca haviam recebido verba federal para cultura antes de 2022, a Política Nacional Aldir Blanc representa mais que uma linha no orçamento: é um reconhecimento tardio da cultura como direito constitucional e elemento fundamental para o desenvolvimento humano e social. Sua implementação efetiva pode significar a diferença entre um Brasil de ilhas culturais isoladas e um país que valoriza e promove sua diversidade cultural de forma integrada e democrática.

A Política Nacional Aldir Blanc não resolverá todos os problemas da cultura brasileira, mas é a primeira política em décadas que entende o financiamento como ferramenta de equalização territorial e democratização de acesso. Seu legado dependerá de nossa capacidade coletiva de transformá-la em política de Estado permanente, não de ocasião. Para isso, é preciso cobrar ajustes e aperfeiçoamentos — como mais capacitação técnica para gestores do interior e mecanismos de flexibilização para realidades específicas —, mas também celebrar e defender suas conquistas estruturantes.

O desafio está lançado: transformar essa revolução silenciosa em um novo pacto federativo pela cultura, capaz de sobreviver a ciclos eleitorais e consolidar o direito à cultura como pilar da cidadania brasileira. Resta saber se teremos a maturidade política e o engajamento social necessários para sustentá-la e aperfeiçoá-la nos próximos anos. O futuro cultural do Brasil depende, em grande medida, dessa resposta.

*Daniel “Samam” Barbosa Balabram é músico, educador, está no Ministério da Cultura (MinC) como coordenador-geral do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) e coordenou a 4ª Conferência Nacional de Cultura (4ª CNC).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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