Sair de “não somos reconhecidos” para ter uma das leis mais avançadas do mundo no que diz respeito ao setor de jogos eletrônicos. Para quem ouvisse isso como uma possibilidade até 03 de maio de 2024 em referência ao setor de games no Brasil poderia achar uma insanidade. Mas cá estamos, comemorando um ano de promulgação desse marco legislativo inédito.
Quando essa batalha começou, o jogo poderia ser considerado perdido. O projeto de lei inicial não tinha toda a complexidade que o setor precisava que tivesse, e para piorar foi cooptado pelas bets para que tentassem fugir da regulamentação governamental, tanto no campo tributário-fiscal, como no campo da classificação indicativa.
Nossa luta contra eles - e por um texto legal que de fato atendesse as demandas do setor produtivo - mobilizou centenas de milhares de pessoas no Brasil inteiro, nos fez desenvolver novas tecnologias (virtuais e sociais) e pautou todo o Senado federal, da esquerda à direita. Ganhamos a luta, diferenciamos jogos eletrônicos de bets e agora temos um marco regulatório para chamar de nosso: a lei federal 14.852 de 03 de maio de 2024.
Mas e agora? Passado um ano da vitória, já temos o que comemorar? O que ainda falta a conquistar? São perguntas que passo a responder neste artigo.
Os impactos de uma política para games
Uma construção legislativa como a que fizemos durante a tramitação do PL 2796/2021 mostra o melhor da política bem feita: transversal, com foco nos interesses do país, onde atuam juntos todos os agentes de uma sociedade inovadora e soberana: poder público, academia, empresários, sociedade civil organizada e a população.
Se nada mais tivesse acontecido, o enorme grau de mobilização social já seria motivo de enorme ganho para a sociedade. Em um país polarizado, imaginar que possamos ter parlamentares de oposição e de situação trabalhando uníssonos em prol de algo tem sido quase inimaginável. O debate do nosso Marco Legal dos Games trouxe a política para perto da juventude, que passou a se interessar e entender melhor os trâmites legislativos.
Isso fica também representado na multiplicação de associações estaduais que representam o setor de jogos eletrônicos ganhando a formalidade, conseguindo voltar a se reunir, melhorando sua tecnologia social e sua capacidade de mobilização e impacto junto aos seus territórios. Não só isso, mas também aprendendo a atuar em uníssono, inclusive encaminhando processos de unificação e atuação conjunta territorializada. Dobraram o número de instituições formalizadas a representar os territórios estaduais. Se considerarmos as em processo de formalização, esse número vai triplicar nos próximos meses.
Isso tem garantido que participemos mais dos debates do país. Não à toa, foi no bojo da aprovação do Marco Legal dos Games que participamos, pela primeira vez como setor organizado, da Conferência Nacional de Cultura e da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, espaços responsáveis por reunir sociedade, academia e governo para a construção de seus planos temáticos decenais.
Outro feito notável foi deixarmos claro: APOSTA NÃO É JOGO! Protegemos crianças e adolescentes do ambiente das apostas. Aprovado como estava, após alterações na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, o projeto liberaria o acesso aos menores de idade aos ambientes de apostas, burlando a classificação indicativa.
Ao deixarmos clara essa distinção - e seguimos apontando os riscos para a saúde da população desse tipo de atividade - abrimos as portas da segurança jurídica para nossa atuação, o que nos permitiu ampliar enormemente o número de oportunidades de financiamento para o setor.
Como a lei nos classifica como produto audiovisual, não resta mais dúvidas que podemos estar nos editais de cultura, e ao menos seis estados da federação nos incluíram nos editais da Política Nacional Aldir Blanc (Bahia, Espírito Santo, Amazonas, Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo, p. ex.).
A lei também nos reconhece como tecnologia e inovação, e então várias fundações de amparo à pesquisa estaduais passaram a disponibilizar a nossa entrada em editais gerais ou mesmo realizaram editais específicos para apoio ao setor de jogos eletrônicos, caso de Amazonas, Rio Grande do Norte, Maranhão, Pará, p. ex.).
E são incontáveis as iniciativas de aplicação dos games de maneira consequente nos ambientes educacionais a partir de iniciativas de governo, transversalizando o setor e garantindo toda sua potência na direção do melhor engajamento dos estudantes no processo de ensino e aprendizagem.
É fundamental notar também que agora contamos com outro peso institucional. Reuniões com ministérios como o de Indústria, Comércio e Serviços, da Cultura, e agências governamentais como a ANCINE e o IBGE mostram que, a partir do texto legal, o governo federal passa a entender o setor.
Não só entender, como atuar em conjunto. O Sebrae Nacional desenvolve um inédito acordo de cooperação técnica com o segmento; o Ministério da Cultura realizada convênio com a Organização dos Estados Iberoamericanos para contar com um pesquisador específico da nossa área; a Secretaria-Geral da Presidência da República organiza o Seminário Nacional "Diálogos com o setor de Games do Brasil".
Todas essas ações e movimentos mostram os efeitos práticos da lei e apontam que estamos prontos para realizar o que ainda falta.
A próxima fase
Se já avançamos, então tudo está resolvido? Longe disso. Mesmo com os múltiplos avanços, ainda faltam ao menos quatro grandes passos fundamentais para o setor, e todos eles estão para serem resolvidos na regulamentação da lei federal 14852/2024.
Criação das CNAEs (Art. 7º § 4º): Uma das principais requisições do setor de jogos eletrônicos nos últimos 20 anos, o reconhecimento da atividade econômica de criação de jogos é fundamental para entendermos, de fato, o tamanho do nosso segmento e trazermos segurança jurídica ao nosso setor. É fundamental obtermos nossa Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE), como determina a lei.
Criação das CBOs (Art. 7º § 3º): Assim como é necessário o reconhecimento da atividade econômica, é também imprescindível que a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) acompanhe o texto legal e garanta a possibilidade de registrarmos os trabalhadores do setor, que atuem sob as regras da Consolidação das Leis Trabalhistas, com a classificação adequada. Com mais segurança jurídica, maiores poderão ser os investimentos privados na área.
Propriedade Intelectual (Art. 20): Registrar a propriedade intelectual de um jogo eletrônico no Brasil (ainda) é impossível. Como o órgão que cuida disso não tem forma de depósito do jogo completo, resta a construção de uma “colcha de retalhos jurídicos” para garantir uma proteção mínima e insuficiente para seu jogo. Registrar a história na Biblioteca Nacional, a trilha sonora na Ordem dos Músicos do Brasil, a marca e o código-fonte no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual não é o mesmo que registrar o jogo, que não é cada uma das coisas separadas, mas justamente o conjunto desses itens. Precisamos que se cumpra a lei.
Regularização dos SDKs (Art. 9º § 2º): Para atingir o mercado de consoles, é fundamental ter acesso aos Software Development Kits, uma espécie de “videogame de fábrica” enviada pelos grandes fabricantes como Sony (Playstation), Nintendo e Microsoft (Xbox). Para entrarem no Brasil, no entanto, eles não têm classificação aduaneira e contam com a sorte para sofrer tributação que pode (ou não) duplicar seu valor. Sem segurança tributária, é impossível vermos o setor crescer.
Sem regulamentarmos a lei, estas importantes conquistas que garantimos por via legislativa ficam perdidas e deixam de gerar os efeitos de crescimento econômico, cultural e social ao país.
É pique, é pique…
Então, temos o que comemorar? O conjunto de ações e conquistas nos mostra que sim. Mais recursos estão aparecendo para o setor, mais investimento público e privado está chegando na ponta, afastamos o dano das bets de nossas crianças e adolescentes e estamos construindo um ecossistema cada vez mais consistente.
Sabemos que o ano de 2024 foi um ano de eleições municipais e o que isso impacta na vida política nacional. Fomos atravessados, portanto, no caminhar para o primeiro ano de vida deste marco legislativo, por desafios sistêmicos importantes. A regulamentação precisa acelerar seu andar.
Mas não há dúvidas: temos que aplaudir forte e cantar alto. Nossa união, a força de um setor mobilizado, a capacidade de fazer Política (com P maiúsculo mesmo) estão mostrando que temos não só um futuro brilhante, mas um presente cheio de oportunidades para criarmos jogos nunca criados, narrarmos histórias nunca narradas, artes nunca feitas, músicas nunca tocadas e continuarmos a encantar jovens dos 8 aos 88 anos com aquilo que fazemos de melhor!
Viva!
* Márcio Filho é presidente da Associação de Criadores de Jogos do Rio de Janeiro (ACJOGOS-RJ) e diretor executivo da GF Corp, empresa voltada para soluções gamificadas. Com uma trajetória sólida que abrange mais de duas décadas, destaca-se pelo seu engajamento social em defesa de políticas públicas voltadas para o setor de jogos, como na participação ativa na aprovação do Marco Legal dos Games. É especialista em Games e Sociedade, e atua diretamente no desenvolvimento de tecnologias enquanto potencializadoras da educação.
Referências:
Lula sanciona marco legal dos jogos eletrônicos no Brasil | CNN Brasil
Lula sanciona marco legal dos jogos eletrônicos no Brasil – Política – CartaCapital
Lula sanciona marco legal dos jogos eletrônicos no Brasil | Brasil | Valor Econômico
Entenda o que muda com o Marco Legal dos Games – Por Márcio Filho e Pedro Zambon | Revista Fórum