Lá no morro, o pau quebra, o clima sempre esquenta
As criança com medo não aguenta mais
E se eu disser que a polícia tá matando quem acorda cinco da manhã
Pra trabalhar tentando ser alguém?
E se eu disser que, na verdade, o sistema é mó covarde?
MC Poze do Rodo, Talvez.
Na madrugada do dia 7 de junho de 2025, uma cena brutal rompeu a tranquilidade e alegria de uma tradicional festa junina comunitária na favela de Santo Amaro, no Rio de Janeiro. Por volta das 3h da manhã, enquanto as crianças, adolescentes, mães, pais e avós dançavam e se divertiam com os rostos pintados e vestidos a caráter, com os restos de milho cozido e quentão ainda enchiam o ar de memória festiva, a Polícia Militar invadiu violentamente o território atirando balas e bombas. O saldo: idosos e crianças feridos, famílias em pânico e o chão da alegria coberto de medo e sangue.
O ataque não foi a um esconderijo do tráfico, nem a um baile clandestino. Foi em uma manifestação cultural legítima, popular e pacífica, parte do patrimônio imaterial do Brasil. Era o povo celebrando a vida e a coletividade, como se faz há séculos. Mas, para o Estado, parece que cultura em território pobre é sinônimo de ameaça. Os MC´s Oruam e Poze do Rodo que o digam.
O governo responsável por essa tragédia é o de Cláudio Castro (PL), governador bolsonarista do Rio de Janeiro, aliado direto do projeto de militarização da vida e da política. Seu secretário de Segurança Pública, Victor César dos Santos, ex-delegado da Polícia Federal, também segue a cartilha bolsonarista de enfrentamento violento e repressão desproporcional.
É foda de manter a calma porque a bala voa
E inocente tá morrendo o tempo inteiro
Parece até que liberaram as arma
É essa lógica — de que favelado é inimigo, de que negro e pobre são alvos legítimos — que guia a mão armada do Estado. O que aconteceu em Santo Amaro não é um “excesso isolado”, é uma política de morte sistematizada, um terrorismo de Estado contra os territórios mais vulneráveis.
E esse projeto de extermínio não é exclusividade fluminense.
Na Baixada Santista, em São Paulo, a política de segurança adotada por Tarcísio de Freitas (Republicanos), também bolsonarista declarado, tem seguido o mesmo modelo. Comandada pelo secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite, ex-capitão da Rota e fiel seguidor do bolsonarismo, a Polícia Militar paulista vem executando operações de alto impacto em favelas com saldo de mortes que beira o genocídio.
Só para se ter ideia:
-Em 40 dias da “Operação Escudo” (iniciada em julho de 2023), foram 28 pessoas mortas pela PM.
-Na sequência, com a “Operação Verão”, já em 2024, ao menos 56 pessoas foram mortas, elevando o total para mais de 84 vítimas.
-Nos dois primeiros meses de 2024, a PM matou 57 pessoas na região, aumento de mais de 400% em relação ao mesmo período de 2023.
Esses números revelam uma prática: a política de segurança pública virou licença para matar, em nome da ordem, da “retomada de controle”, da “guerra às drogas” — uma guerra que só tem um lado morrendo: o povo preto, pobre e periférico.
O Estado, que deveria garantir cultura, saúde, educação, moradia e dignidade, é o mesmo que chega às 3 da manhã atirando sem pudor algum em festa junina. Não é força de segurança. É ocupação bélica. É terrorismo de Estado travestido de política pública.
E a contradição é gritante: o mesmo Brasil que enche arenas de shows sertanejos com verbas públicas, que patrocina festivais milionários para elites urbanas, reprime com fuzil e blindado o povo que faz sua própria festa na favela. O que está em disputa é o direito de existir — com alegria, com identidade, com pertencimento.
Até quando vamos permitir que nossos símbolos culturais, nossas festas e nossos corpos sejam alvos da máquina de morte institucional?
A festa junina de Santo Amaro foi atacada porque ousou existir. Porque celebrou. Porque resistiu. Uma família foi destroçada com a morte de um jovem trabalhador e muitas crianças e adolescentes devem estar traumatizados, com medo, ódio e desesperança.
Mas talvez
Meu povo se levanta algum dia
Mas talvez
A paz reine pelas periferia
Mas talvez
Meu morro volta a viver com alegria
Mas talvez
Mas a luta segue. E a denúncia precisa ecoar em cada canto: não é apenas a bala que mata — é o silêncio cúmplice que sustenta essa violência.
*Danilo Tavares (@danilotavaressol) é produtor cultural, funcionário público municipal e secretário de comunicação do PSOL de São Vicente, além de membro do Conselho de Economia Solidária de São Vicente e do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e diretor da Casa Crescer e Brilhar.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.