A cidade que vestia vermelho e que hoje veste a vergonha

Na Fórum Folia, Estevan Mazzuia aborda sua relação com Santos, famosa pelos carnavais de outrora, que hoje completa 475 anos e se consolida como reduto reacionário

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Por Estevan Mazzuia *

Santos completa 475 anos hoje, desfigurada. Foi porta de entrada para a imigração “que floriu de cultura este país”, sede do maior porto da América Latina e berço de Pagu, Plínio Marcos, Renato Teixeira, Aloizio Mercadante, Celso Amorim e Telma de Souza, entre outros. Santos do Quilombo do Jabaquara, de Pai Felipe. A urbe reacionária é um arremedo da “Cidade Vermelha” de outrora. A “Nova Moscou” caiu, assim como a velha. 

 Com a urbanização da orla, o perfil sociopolítico da população gradativamente se transformou e a luta de classes dos trabalhadores portuários deu lugar à acomodação dos aposentados da orla, que curiosamente buscam “sossego” em Santos, não em Iguape ou Uchôa.

Infelizmente, a municipalidade foi seduzida pelas aposentadorias desses “novos” habitantes que, pouco a pouco, promovem a agonia do caldeirão cultural que já foi a cidade. Resistamos! 

 Contudo, sou muito grato à cidade que me acolheu. Tenho memórias vagas da transformação promovida por Telma, quando a cidade era meu constante destino nas férias escolares. Foram tantos janeiros, fevereiros e julhos de minha vida passados em Santos, que posso afirmar ser 25% santista, pelo menos. Durante a licença maternidade, foi aqui me minha mãe dedicou-me os primeiros cuidados. 

 Já viajei um bocado e acredito que Santos seja uma das cidades mais agradáveis que já conheci. Ao menos para minha a realidade. Não ignoro a realidade esquecida dos arredores do centro, ou da Zona Noroeste. Todavia, a elas atribuo uma causa maior, nacional. Talvez Santos não tivesse suas virtudes, mas dificilmente deixaria de ter seus problemas. 

 Feitos os prolegômenos, passemos ao cerne: meu amor pelo carnaval tem profundas raízes nesta cidade. Não lembro de ter passado um carnaval em São Paulo nos primeiros 15 anos de minha vida. As minhas mais remotas lembranças de carnaval são da TV em preto e branco, na sala, com toda a família pela casa: seis adultos e cinco crianças, dividindo dois quartos e um banheiro. A triste realidade de muitos era sinônimo de felicidade para mim.  

 Frequentava a Cinelândia Santista, na avenida Ana Costa, da qual apenas o Cine Roxy sobreviveu, dividido e desfigurado. Assistia aos lançamentos dos Trapalhões, assiduamente. Voltava para casa pela avenida da praia, fascinado com as alegorias estacionadas junto ao meio fio, logo após as arquibancadas modulares que emolduravam o sambódromo temporário. Dotadas de tanto brilho, vida e encanto na noite anterior, não passavam de um chassi coberto de madeira e tecido para a maioria das pessoas, no dia seguinte. Para mim, o encanto permanecia. Examinava minuciosamente, uma a uma. Trepava em algumas, para desespero de minha mãe. 

 Eram os tempos de Oswaldo Justo, quando o carnaval santista era reconhecido como o melhor do Estado e o segundo melhor do Brasil. É de Santos uma das escolas mais antigas do país, a X-9, do bairro do Macuco. Fundada em 1º de maio de 1944. Conhecida como a Pioneira, não foi a primeira da cidade, mas é a mais antiga ainda em atividade.

Um pouco mais nova, há a Brasil, fundada em 31 de março de 1949, vencedora de 13 campeonatos entre 1950 e 1963, o que lhe rendeu o epíteto de Campeoníssima. Nos anos 60 elas perderam a hegemonia para o Império do Samba, de Dráuzio da Cruz, que seria Rei Momo de Santos e de São Paulo, nos anos 90. Madrinha da Mocidade Alegre, a escola azul e rosa enrolou a bandeira no fim dos anos 80. 

 Há outras, mais novas, mas igualmente tradicionais, como a Padre Paulo, a Unidos dos Morros e a União Imperial. Há, inclusive, uma que também faz aniversário hoje, a Real Mocidade Santista, do Marapé.  

E não podemos esquecer do eterno Waldemar Esteves da Cunha, verdadeiro patrimônio do carnaval santista, Rei Momo entre 1950 e 1991, exceto 1957, quando foi deposto por um “golpe” que conduziu um forasteiro ao trono, conforme relatado por J. Muniz Jr., o “Lorde Batucada”, um dos maiores estudiosos de carnaval deste país, intitulado Marechal do Samba (nunca me agradou o tal “Estado-Maior do Samba”, que distribui “patentes” aos sambistas da cidade; a mim, é uma forma de impor respeito por meio de autoritarismo, o que nunca dá certo), que reuniu essa e outras histórias em seu livro “Memórias do Carnaval Santista”, de 2014.  

 Por fim, há que se mencionar as demais entidades carnavalescas que ajudaram a escrever a história do carnaval santista, como os Chineses do Mercado, as Dengosas do Marapé e as Favoritas do Sultão. As duas últimas, por muitos anos, rivalizaram na festa que tinha a cara de Santos, o Desfile de "Dona Doroteia: Vamos Furar Aquela Onda?". Um banho de mar a fantasia que se originou há um século.

Eu aguardava ansiosamente aquele sábado, uma semana antes do carnaval. No começo da tarde, centenas de motocicletas desfilavam pela praia, pilotadas por estranhas “mulheres” de pernas cabeludas. Em seguida, carros e caminhões decorados. Pelos calçadões, outras “mulheres” com seios do tamanho de laranjas ou bolas de meia, e com pelos pulando pelos decotes, promoviam muitas gargalhadas. 

 Nunca estive na Finlândia, mas imagino que o ambiente de descontração seja muito parecido com os atuais carnavais em Santos. É verdade que a cidade tem a apresentação de diversas bandas, ao longo de um mês. Mas no tríduo de Momo, pouca coisa muda. É fácil esquecer que é carnaval. Não há qualquer diferença em relação ao feriado de 2 de novembro. Não temos mais a avenida decorada, as crianças fantasiadas, e os bailes de carnaval tocam as mesmas músicas executadas em maio ou em setembro. Não temos marchinhas. As escolas de samba ainda desfilam, mas há muito foram retiradas dos holofotes da orla, empurradas para a periferia da cidade. Ao menos agora eles têm carnaval, diga-se. Mas a praia sempre foi, por excelência, o ponto de encontro da população. 

 A Santos que conheci, aquela tão bem retratada nos escritos de J. Muniz, morreu nos anos 90 do século passado. Junto com a velha Moscou. Hoje Santos é uma cidade onde Bolsonaro encontra apoio em uns 80% da população, que não nutre qualquer empatia pelo semelhante. A cidade da alegria se tornou a capital do ódio e da intolerância.  

 Parabéns, Santos, ainda que haja pouco a ser comemorado. Que seu passado seja, ao menos, preservado em nossas memórias. Só assim podemos ter esperanças de resgatá-lo um dia.  

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.