A cultura do cancelamento é um desserviço para a luta coletiva – Por Camila Moreno

Condenar a cultura do cancelamento nada tem a ver com tolerar machismo, racismo e discriminação LGBT. Tem a ver com compreender que numa sociedade preconceituosa, a tarefa de enfrentar a discriminação é através de lutas coletivas

Foto: Rede Globo (Divulgação)
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Por Camila Moreno *

Esse é o primeiro elenco do Big Brother Brasil composto por muitos participantes negros e/ou outros também conhecidos por serem defensores de pautas progressistas. Ainda no início, o programa suscitou uma série de debates importantes.

No programa, Juliette, paraibana, foi vítima de xenofobia, ridicularizada por seu sotaque, porque supostamente falava muito. A participante paranaense Karol Conká chegou a dizer que, por ser de Curitiba, teria mais educação que a participante nordestina, uma vez que “lá na terra dessa pessoa, é normal falar assim” enquanto na capital do Paraná as pessoas seriam mais reservadas.

O participante Gilberto teve sua negritude questionada por Nego Di: “Pode dizer que é muçulmano. Negro, negro, não” levantando o debate sobre o colorismo. O administrador das suas redes sociais defendeu a autodeclaração racial de Gil.

O participante Lucas Penteado foi vítima de uma série de violências após ser inconveniente na primeira festa do BBB 21. A exclusão chegou ao ponto do artista não poder comer na mesma mesa dos demais.  A gravidade dos ataques racistas, junto ao questionamento sobre sua orientação sexual por Lumena, uma psicóloga negra e lésbica, somados à perseguição que contou com a participação ou conivência da maioria da casa, o fizeram desistir do programa.

Esses acontecidos fomentaram um importante debate sobre a cultura do cancelamento. As redes sociais potencializaram um comportamento muito perigoso que se tornou vitrine no programa. O cancelamento, nada mais é do que uma perseguição desmedida a quem comete algum erro.

Mas quem tem o poder de cancelar alguém? Supostamente outros ativistas que não tenham sido cancelados ainda. Ocorre que o cancelamento tem se tornado uma prática recorrente, vinda muitas vezes de quem tem muitos seguidores na internet e julga-se digno do direito de decidir quem permanece na roda da esquerda e quem deve ser excluído.

Acontece que nem Juliette, nem Gilberto e nem Lucas cometeram erros graves na casa. Seus erros inclusive não envolvem atitudes racistas, homofóbicas ou machistas, mas foram perseguidos e isolados inclusive por participantes supostamente progressistas, chamados de militantes nas redes sociais, mas são apenas indivíduos julgavam-se detentores de uma verdade absoluta sobre a conduta alheia.

É por isso que não devemos confundir militantes com quem apenas de posiciona a favor de causas progressistas na internet. Militante se organiza com outras pessoas para mudar o mundo, constrói um projeto coletivo. Quem tem interesse em transformar nossas pautas coletivas, em apenas conquistas individuais é o capitalismo. Lumenas, Karóis e Fiuks não são militantes, não têm o poder, que ninguém tem, de decidir sobre quem segue na roda de esquerda e quem deve ser cancelado.

Condenar a cultura do cancelamento nada tem a ver com tolerar machismo, racismo e discriminação LGBT. Tem a ver com compreender que numa sociedade preconceituosa, a tarefa de enfrentar a discriminação é através de lutas coletivas, que incluem também lutar por um outro sistema, que liberte todas as pessoas.

O feminismo, a luta antirracista e contra a discriminação LGBT têm de ser necessariamente anticapitalistas porque a liberdade de todos e todas só será alcançada em um outro modelo de sociedade. No capitalismo até poderemos ter avanços pontuais, desde que não ameacem a exploração do trabalho e a propriedade privada. É por isso que a nossa luta por um outro mundo possível é indissociável: luta de classe, luta feminista, luta antirracista e luta contra a discriminação LGBT. 

Quem propõe separar essas lutas presta um grande serviço ao capitalismo, que tenta o tempo todo, através do liberalismo, ressignificá-las para que sejam tratadas como empoderamento individual, meritocracia, irmandade, produto para consumo ou ativismo narcisista, que ganha likes na internet, mas não muda as estruturas de um sistema extremamente desigual.

É por isso que a cultura do cancelamento contribui para o enfraquecimento de lutas coletivas históricas, quando tenta invalidá-las pelo erro de um único indivíduo. Mulheres erram, negros erram, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais erram. Pessoas erram, continuarão errando e isso não deve invalidar a luta contra o racismo, contra a discriminação LGBT e o feminismo, porque não são lutas personalistas.

*Camila Moreno é feminista, antifascista, socialista e membro da Executiva Nacional do PT.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.