A negação do direito à maternidade de mulheres negras, por Mônica Cunha

Ao longo da minha trajetória, descobri que violações sistêmicas ocorrem em razão de uma reparação histórica que o Estado brasileiro ainda deve ao povo negro por toda a cultura da tortura, do estupro e da morte que a escravidão deixou neste país

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Por Mônica Cunha*

Pertenço a um grupo de mulheres, na sua maioria negras, que sofrem inúmeras violações de direitos por parte deste Estado. Negando a nossos filhos o cumprimento de medidas realmente socioeducativas ou assassinando-os através de seu braço amado, o Estado evidencia a sua seletividade, revelando a mais perversa face da Necropolítica implementada no Brasil. Mesmo quando não é a polícia que mata, a vida é negligenciada quando não se garante a segurança pública como um direito.

Ao longo da minha trajetória, descobri que tais violações sistêmicas ocorrem em razão de uma reparação histórica que o Estado brasileiro ainda deve ao povo negro por toda a cultura da tortura, do estupro e da morte que a escravidão deixou neste país, sem que houvesse qualquer preocupação governamental de superação destas, revelando-se no racismo estrutural de nossa sociedade.

Nós, mulheres negras, principalmente quando nos tornamos mães, temos a certeza de que criar e educar aquela criança é nosso dever. Apesar disso, conforme os anos vão passando, descobrimos que nossa responsabilidade tem limite, já que nossos filhos crescem e adquirem vontade própria, como quaisquer outros. Nos enganamos quando achamos que, ao crescerem, nosso filhos não precisam de uma orientação tão cuidadosa. A rebeldia quanto à estrutura cruel desta sociedade e o seu não enquadramento às regras impostas é natural entre adolescentes de qualquer classe social e com nossos filhos não é diferente.

A maioria dessas mulheres, entre elas eu, é negra e sustenta a si, a seus filhos e, muitas vezes, outros membros da família, como pais ou avós. Em regra, somos mulheres que realizamos trabalhos subalternos, informais, e que, por isso mesmo, temos pouco tempo para acompanhar o crescimento de nossos filhos, dos filhos das nossas vizinhas e até mesmo a transformação dos nossos bairros e comunidades.

Assim como nossos filhos mudam, a realidade dos bairros também muda e já não é mais como antigamente, quando tínhamos a confiança de que os nossos filhos estavam seguros onde moravam.

Já carregamos, mesmo sem nossos filhos estarem envolvidos com algo ilícito, a tão terrível culpa que nos coloca essa sociedade machista e racista. Nos culpam por não estarmos no momento em que eles mais precisam, como nas reuniões escolares, nos esportes, nas festas, nas brincadeiras. Nos culpam também por não aguentarmos mais aquele homem que não faz nada, que não assume as responsabilidades de pai, não contribui financeiramente para o desenvolvimento de seus (nossos) filhos.

Já começamos a adoecer por conta dessa culpa que imaginamos ter. A partir daí, quando descobrimos que nossos filhos estão dando mais trabalho do que o esperado, essa culpa se materializa em dor real, nosso corpo adoece de verdade, mas, para nós, mulheres negras, que trabalhamos, quase sempre na informalidade, nos é negado o direito à licença médica. Nossa vida começa a ser tocada de forma automática, isso se reflete na qualidade do trabalho que desenvolvemos. Nossa cabeça voltada para o cuidado com o filho.

Por que eu? Por que comigo? são perguntas que todas já nos fizemos. E só podem ser respondidas quando percebemos que, nesta sociedade, quando a vítima é negra, pode.

Não esqueceremos da fala do ex-governador, hoje preso e condenado a centenas de anos de prisão, que chamou as mulheres das favelas de "fábricas de marginais". E tal afirmação foi relativizada por setores da mídia e da branquitude intelectualizada. Nada mais revelador do racismo da nossa elite.

O nosso adoecimento começa de uma forma lenta, dando sinais não muito claros e, quando percebemos, já estamos com depressão, síndrome do pânico, perda de memória. Não são poucas as mulheres que, diante de tudo isso, desenvolvem AVCs, câncer, ou mesmo dependência química. E quando temos nossos filhos assassinados, humilhados, difamados pelo mesmo Estado que, desde gravidez, nos negou saúde, educação, tempo de lazer e convivência diária, a sociedade nos aponta como inconsequentes e irresponsáveis. Temos casos de ataques cardíacos fulminantes, como ocorreu a uma das mães da chacina de Costa Barros (na qual foram assassinados cinco jovens negros com 111 tiros ao saírem do Parque de Madureira). O mesmo ocorreu com algumas daquelas que nos precederam e a quem devemos sempre honrar a memória: as Mães de Acari. Dessa forma, vemos que a bala do Estado não atinge somente uma pessoa e sim toda uma família.

Diante desta realidade, que nos é imposta todos os dias, lutamos para mudar essa história. Não podemos voltar no tempo e mudar o início de cada história mas podemos, e devemos, mudar o final. Por isso, temos hoje toda essa militância de mães que gritam a todo instante pela vida dos seus filhos, pela educação de seus filhos, mostrando o quanto elas têm direito a parir e a criá-los, obrigando a sociedade e o Estado a escutá-las e vê-las como mulheres de luta, que contribuem desde sempre para a construção desse país. Apostamos que essa nova geração de adolescentes e jovens negras que estão ocupando hoje as diversas áreas de ensino, principalmente as universidades, se tornem doutoras em diversas áreas do conhecimento. São elas que de fato vão fazer um mundo diferente para o povo negro. Lutemos, juntas, para que tenham, de fato, reconhecido o seu direito à maternidade, que tanto nos foi negado ao longo da história.

*Mônica Cunha é fundadora do Movimento Moleque e coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Alerj