A república dos generais e a democracia sob armas, por Marcelo Danéris

"Até onde o exército estaria disposto a ir para defender o governo Bolsonaro, a vice-presidência, nove ministérios e os quase três mil cargos que ocupa no governo federal?"

Foto: Marcelo Pinto/APlateia
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Por Marcelo Danéris*

Lembro quando prestei serviço militar em 1989, ano da primeira eleição direta para presidente da República desde o Golpe de 1964. Os quartéis estavam nervosos com a possibilidade de vitória do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores, e por isso os comandantes mantiveram as tropas em prontidão durante o segundo turno. Na antevéspera da eleição, o coronel comandante do Colégio Militar de Porto Alegre – onde servi, como soldado, diga-se – reuniu a tropa no pátio do Casarão da Várzea para alertar sobre os riscos de uma vitória de Lula. O exército não aceitaria, ele foi claro, e deveríamos estar preparados para a possibilidade de ações militares, e ao menos, mais um ano de serviço militar obrigatório. Portanto – aconselhou –, o melhor seria que orientássemos nossos familiares a não votar em Lula.

A natureza das Forças Armadas não havia mudado após 21 anos de ditadura e um desastre econômico e humanitário que devolvera ao povo um Brasil traumatizado, ferido e endividado. A redemocratização não afetava os “valores” que haviam motivado o Golpe de 64, nem levaria a qualquer revisão doutrinária ou dos crimes cometidos contra a humanidade e a democracia. A narrativa triunfante repetia a exaustão que a “missão” havia sido cumprida ao evitar que o Brasil se transformasse em uma nova Cuba. De resto, a Lei da Anistia de 1979 lavaria as fardas sujas de sangue. 

Nada de novo para história brasileira, assim como com a escravidão, o genocídio indígena, os crimes da colônia, do Império e do Estado Novo, o Brasil, em nome da “pacificação” do país, imposta de cima para baixo, anistiou o passado e jogou para o futuro as consequências das nossas veias abertas. 

O golpe de 2016, animado pela impunidade dos golpes passados, possibilitou a ascensão de Jair Bolsonaro, e trinta e cinco anos depois da redemocratização, o exército está, indisfarçadamente, de volta ao governo – sem nunca ter deixado o poder. Agora pela mão de uma oligarquia gourmetizada pelo capital financeiro global, e sob o comando de um ex-capitão, insano e autoritário – “um mau militar”, segundo o ex-presidente do regime militar, Ernesto Geisel. Da velha aliança – oligarquia, exército, grande mídia e Igreja – apenas a Bíblia havia trocado de mãos.

No início do século XX, o exército da jovem república era uma instituição em disputa. Os comunistas sonhavam formar um exército popular ao estilo da Revolução Russa, os nacionalistas queriam um exército cidadão (no sentido da participação na vida nacional) e legalista, e os conservadores um exército imunizado à influência política, sem participação social ou partidária-eleitoral. A Revolução de 1930 com Getúlio Vargas no poder, definiu o papel político das Forças Armadas. Como disse Murilo de Carvalho, “ao chegar ao governo no vácuo de poder aberto pela crise oligárquica, Vargas incentivou a transformação das Forças Armadas em ator político”. O auge da integração entre Forças Armadas e governo ocorreu durante o Estado Novo (1937–1945), quando estas foram transformadas em pilar do governo Vargas. Com a máxima, “acabar com a política no Exército para poder fazer a política do Exército”, o então chefe das Forças Armadas de Vargas, general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, fez do Exército uma organização politicamente poderosa, hierarquicamente organizada e doutrinariamente liberal e conservadora. 

A direção militar de Góes Monteiro expressava a vitória ideológica da corrente conservadora no interior das Forças Armadas. Com ele, as tropas “foram expurgadas de divergentes e submetidas à intensa doutrinação” (Murilo de Carvalho). Para Oliveiros Ferreira, Góes Monteiro foi o intelectual deste novo Exército, “o general que incorporará o desprezo pelos civis – para ele os políticos se dividem entre ‘a camorra de cima e a camorra de baixo’, [...] o único general a dar ao Exército uma missão política que acabava redundando numa concepção de Estado” (FERREIRA, 2000). 

Entre 1945 e 1960, o Exército voltou a ser palco de disputa entre progressistas e conservadores. Com o final da II Guerra Mundial e a forte rejeição aos regimes totalitários no ocidente, oficiais e soldados brasileiros voltaram da guerra francamente simpáticos à democracia. Foi nesse contexto que a ação unificada das três Armas (Exército, Marinha e Aeronáutica) encontrou o apoio popular e político para depor Getúlio Vargas do poder em 1945. Eleito o general Eurico Gaspar Dutra presidente, o armistício durou até 1950, com o retorno de Getúlio à Presidência. Na crise de 1954, Getúlio recebeu de 27 generais e marechais um ultimato por sua renúncia, no dia seguinte, suicidou-se e enterrou com ele as pretensões golpistas. Novamente em 1955, com a eleição de Juscelino Kubitschek, setores das Forças Armadas ligados à Cruzada Democrática tentaram impedir a posse do presidente eleito. Com apoio popular e um golpe preventivo, organizado pelos marechais Henrique Teixeira Lott e Odílio Denys, JK assumiu a presidência.

Mais tarde, em agosto de 1961, Odílio Denys, como Ministro da Guerra, tentou impedir a posse do Vice-presidente, João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. A quartelada foi derrotada pelo movimento da Legalidade liderado pelo governador gaúcho Leonel Brizola, com o apoio decisivo do general comandante do III Exército, Machado Lopes. “Que as armas não falem”, disse Jango ao aceitar a solução parlamentarista.

Em 1964, com o recrudescimento da Guerra Fria, mobilizados pela oligarquia contra as Reformas de Base de Jango, e apoiados pelo EUA, a corrente conservadora do Exército finalmente alcançou a maioria interna para o golpe de Estado, e consolidou sua hegemonia no pensamento militar. As fileiras militares sofreram, então, uma segunda onda de perseguições, expurgos e assassinatos de adversários internos, os “melancias” (verdes por fora e vermelhos por dentro), como gosta de lembrar Bolsonaro sempre que criticado por algum oficial.

Na década de 80, no processo de redemocratização, o exército impôs suas condições para desembarcar do governo: vetou o nome de Ulysses Guimaraes para presidência e impôs José Sarney após a morte de Tancredo Neves; impediu Leonel Brizola de assumir o Partido Trabalhista Brasileiro; não permitiu a extinção das polícias militares; exigiu a manutenção, no texto constitucional, das Forças Armadas como guardiãs da lei e da ordem, entre outras. Em entrevista aos pesquisadores Maria Celina D´Araujo e Celso Castrocomo, o ex-presidente Geisel defendeu, em 1993, que os "militares devem ficar fora da política partidária, mas não da política geral". Como produto do Estado brasileiro, do Império à República, as Forças Armadas constituíram-se a sua imagem e semelhança. No Império, foram formadas com os restos da Colônia e sustentaram um Estado escravocrata; na República, desembainhada por um marechal, sustentam até hoje os privilégios de classe da elite brasileira. Para Jorge Zaverucha “o controle civil sobre os miliares nunca houve, plenamente, desde a redemocratização em 1985. Sempre pairou uma zona cinzenta que poderíamos chamar de hibridismo institucional. Os ritos de uma democracia eleitoral formal convivem com enclaves e prerrogativas militares”. E o apoio ao regime democrático-constitucional sempre pareceu circunstancial.

As constantes ameaças lançadas pelo atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno – um golpista entre golpistas, que em 1977 assessorava o ministro do exército, Silvio Frota, durante a tentativa fracassada de derrubar o então presidente Geisel e impedir o processo de abertura política –, com o discreto apoio dos generais-ministros, contra poderes e instituições, acenderam a luz vermelha para os democratas. Até onde o exército estaria disposto a ir para defender o governo Bolsonaro, a vice-presidência, nove ministérios e os quase três mil cargos que ocupa no governo federal?

Os perigos se anunciavam já há algum tempo. Após um período de silêncio ressentido durante os governos de Fernando Henrique e Lula, oficiais da ativa e da reserva voltaram a se manifestar nos governos Dilma Rousseff e Michel Temer, tanto em homenagens à Ditadura e contra a Comissão da Verdade, quanto se imiscuindo em questões políticas. No auge destas manifestações, antes das eleições de 2018, o comandante das Forças Armadas, general Eduardo Villas Bôas,ameaçou o Supremo Tribunal Federal, pelas redes sociais, sobre a possibilidade de decisão favorável ao Habeas Corpus do ex-presidente Lula. O general admitiu, posteriormente, que pretendia “intervir” caso Lula fosse libertado, porque, segundo ele, “o agravamento da situação depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar”.  As manifestações evidenciaram que os governos, especialmente de FHC e Lula, negligenciaram a questão militar e se satisfizeram com o aparente silêncio da caserna. Dominado primeiro pelo ressentimento, e depois inundado pela narrativa de ódio contra a esquerda, que ensejou o impeachment de Dilma e a prisão de Lula, o imaginário militar, do exército às polícias, foi facilmente colonizado pela retórica bolsonarista.

O avanço da onda conservadora e de extrema-direita no ocidente, especialmente nos EUA, e o rearranjo da economia global, após a crise de 2008, que tem reunido neoconservadores e neoliberais ao redor do mundo explica em parte a quebra do silêncio. Nos quartéis, a nova onda foi sendo incorporada à doutrinação militar por oficiais como o general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho. No artigo “Bolsonaro e os Quartéis: a loucura com método”, Eduardo Costa Pinto revela que as ideias do general Coutinho, autor de diversos livros de doutrinação antimarxista, “têm sido repetidas de forma sistemática por oficiais da reversa, da ativa e pelo ex-comandante das Forças Armadas, Villas Bôas, nos últimos anos”.

As ideias de Coutinho são influenciadas pela extrema direita estadunidense, e basicamente alertam sobre “o recrudescimento da ameaça socialista no Brasil, com a chegada ao poder dos sociais democratas fabianos [Fernando Henrique e Lula] – que seria um dos movimentos adjacente ao Movimento Comunista Internacional (MCI) e que esses agrupamentos convergiriam para o socialismo mundial”. Os dois governos teriam promovido “uma reforma intelectual e moral, pela via do ‘politicamente correto’, com o objetivo de ganhar a luta hegemônica no âmbito da sociedade para construir um senso comum modificado que geraria uma homogeneização da sociedade civil, permitindo a ‘transição para o socialismo’” (PINTO, 2019). A ameaça comunista mundial do século XXI teria sido atualizada, segundo Coutinho, pela incorporação da teoria revolucionária gramsciana, e neste sentido, todas as manifestações sociais, sindicais, estudantis e artísticas de diferentes matizes teriam sido capturadas para a luta de classes e a destruição da família tradicional e dos valores cristãos. 

Na reação, o ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro, general Santos Cruz, em artigo intitulado “O militar e a política”, defendeu que as “Forças Armadas são instituições permanentes do Estado brasileiro e não participam nem se confundem com governos, que são passageiros, com projetos de poder, com disputas partidárias, com discussões e disputas entre Poderes ou autoridades, que naturalmente buscam definir seus espaços e limites”. Disse ainda que a democracia é “também o funcionamento harmônico das instituições. É também a liberdade de imprensa e de associação. É também um processo coletivo de construção, a partir da diversidade da nossa sociedade, de um País mais justo, próspero e tolerante”. Mas aparentemente, o artigo foi escrito mais “para dentro“ do que “para fora”, como quer sugerir o texto. Ao destacar o papel do exército na atualidade, Santos Cruz busca formar uma “opinião pública interna” favorável à defesa da democracia, e afastar o exército da influência do governo e de seus assuntos de “varejo”.

No estado da arte da realidade brasileira, as Forças Armadas estão diante de uma encruzilhada política e um dilema existencial: seguirão ao lado de um Presidente que debocha dos milhares de brasileiros mortos pelo coronavírus, despreza a ciência, a democracia e ataca minorias, imprensa e instituições da República, ou se manterá ao lado da Constituição Cidadã, do regime democrático e do povo? Irão integrar os quartéis da loucura bolsonarista – centrão, robôs, milícias – ou serão parte das forças democráticas contra a sanha golpista? Com a velha aliança rachada, caberá aos militares responder se serão as Forças Armadas do futuro ou do passado.

Em algum momento, em meio à tensão desta realidade em abismo, nossos olhos se voltaram para a alternativa militar. Um risco político e estratégico, somente justificável pelo sentimento de indignação que invade grande parte da sociedade brasileira, e pelo desejo sincero de abreviar esta quadra da história. As armas não se calam senão pela voz do povo. E é este que ainda está a demonstrar altos níveis de intoxicação conservadora e autoritária, depois de quase oito anos de ódios espargidos contra o “politicamente correto”, o “marxismo cultural”, a “ideologia de gênero”, o “gaysismo”, a “ditadura das minorias”, o “assistencialismo do Estado”, o movimento ambientalista, o comunismo e a esquerda em geral. Infelizmente não há atalho para refundar a utopia libertária e democrática. O caminho será longo, mas a desaprovação crescente do governo Bolsonaro e as recentes manifestações antifascistas, ocorridas em todo o Brasil, apontam uma nova esperança para refundação da democracia brasileira.

*Marcelo Danéris é cientista político e ex-vereador de Porto Alegre

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.