A volta do freguês: redes digitais solidárias e pequenos negócios em tempos de Covid-19

"O isolamento social ensejou a construção de pequenas redes de apoio, pautadas nas relações entre partes e sedimentada pelas plataformas digitais como canais de difusão, acolhimento e comercialização"

Foto: Daniel Castellano / SMCS
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Por Luís Flávio Maia Lima e Guaciara Barbosa de Freitas* Uma característica histórica da sociedade brasileira reside no fato de ser estruturada em três eixos: em um deles, a elite privilegiada, que controla os meios produtivos e também o Estado; no outro, situa-se uma classe média que orbita – em grande parte – ao redor da elite; e no terceiro, outra classe de excluídos, que abarca desde os trabalhadores, os micro e pequenos empresários, os despossuídos e quase todos na periferia do sistema. Apesar das mudanças processadas no interior da economia brasileira pós- republicana, constata-se que essa macroestrutura social tenha se mantido, embora recrudesça em alguns momentos, como por exemplo em razão da industrialização brasileira nos anos de 1940 a 1970. Porém ao longo dos últimos quarenta anos observa-se uma agudização do quadro social com o avanço da precarização de grande parte da sociedade, em razão da mundialização, da retirada dos direitos sociais e trabalhistas, do avanço do Estado mínimo, entre outras coisas. Portanto, a sociedade brasileira é assentada sob um apartheid social mensurável por diversos ângulo e indicadores. Especificamente no campo do trabalho e da renda é possível também observar os desníveis e as desigualdades sociais no interior da força de trabalho no Brasil. As informações da Pnad Contínua do IBGE para o trimestre móvel encerrado em janeiro de 2020, disponibilizadas em fevereiro, exemplificam este processo, posto que, aproximadamente 39% da população ocupada estão fora da cobertura dos direitos, seja como empregados do setor privado, trabalhadores domésticos, trabalhadores em setores públicos, trabalhadores por conta própria ou trabalhadores familiares. A dimensão desse quadro avança quando focamos nos trabalhadores que dependem da renda de outros segmentos, notadamente da classe média (em todos os seus níveis), bem como da elite, como é o caso dos trabalhadores domésticos e dos informais, classificados como autônomos que, respondem, respectivamente, por 6,65% e da 26,10% do total de ocupados. Essas duas categorias registram, por exemplo, desníveis acentuados na renda auferida, pois os trabalhadores domésticos sem carteira têm rendimento inferior ao salário mínimo vigente (R$ 768, média trimestral encerrado em janeiro/2020) e os por conta própria, valor menor em cerca da 26,55% da média brasileira. Tais números revelam a natureza das atividades desses segmentos de trabalhadores que se confrontam com a gravidade da situação pela qual passa atualmente a sociedade brasileira em decorrência da pandemia do Convid-19, que obriga uma paralização das atividades produtivas, restrição à circulação de pessoas e prescreve o isolamento social, dado o risco de propagação da doença, o que impacta diretamente nesses trabalhadores. O impacto é ampliado pelo fato de o governo central estar calcado numa política ultraliberal, reativa, sem capacidade de avaliação de cenários e extremamente fiscalista, que agrava as condições sociais e de sobrevivência da sociedade brasileira, principalmente, dessas duas categorias de trabalhadores, os domésticos e os informais. As medidas anunciadas pelo executivo nacional, além de tímidas não abrangem todo o espectro da sociedade brasileira que delas necessitaria, o que espraia os efeitos da crise em todos níveis, jogando uma parte dos trabalhadores no limbo, aumentando a desigualdade e as dificuldades de sobrevivência a curtíssimo prazo. A ambiguidade e a posição do governo central lembra uma frase de desenho animado das antigas do personagem Baba Looey sobre outro personagem, o Pepe Legal: "Pepe Legal es inteligente, o que lhe falta el pensamento..." Com este cenário no campo institucional aliado à parada nas atividades e na circulação de pessoas é necessário encontrar soluções para manter oxigenado o fluxo de renda para essas categorias conciliando com as restrições de ordem sanitária para minimizar as transmissões do Covid-19 e os óbitos provenientes do mesmo. A questão é: que alternativas existem na manga? Uma das alternativas, numa sociedade de informação, cujo o acesso a serviços é cada vez mais disseminado através de ferramentas virtuais, é a apropriação das redes sociais digitais online como instrumento de apoio à divulgação e venda da produção social, pois permite a interação direta entre os atores sociais, porém, deslocado do entendimento e-commerce, este vinculado ao capital como ferramenta de lucro. Por exemplo, o uso das plataformas digitais é crescente, conforme apurou pesquisa realizada nas cidades de Ananindeua, Belém e Marituba no final de 2018 com os informais que detém estabelecimentos fixos (informais empresariais), sendo o uso de ferramenta virtuais da ordem de 36% naquele ano . O papel exercido pelas plataformas digitais, nesta condição de crise, é superar a barreira do isolamento ao se constituir em uma estratégia fundamental para a continuidade da atividade, a partir da construção de rede de fornecimento dos produtos ou de transferência de renda a partir de relações construídas com base na sociabilidade, ou seja, um capital social que se transfere para as plataformas digitais a partir da interação entre as partes, onde que muito mais do que a relação de vendedor – comprador, pautada pelas variáveis consumo, preço e lucro, nota-se o poder simbólico da relação de confiança entre pessoas que compõe redes de indicação e solidariedade, em um momento singular de crise no mundo contemporâneo, que alcança diversas dimensões do ser e do ter. No caso dos seguimentos de trabalhadores domésticos e informais, a interação entre é uma das características marcantes de ambos os segmentos com seus públicos principais, pois incorpora outras variáveis, distintas da visão do capital centrado na acumulação e concentração de capital. Assim, o isolamento social também ensejou, devido a lógica diferenciada das relações sociais construídas por esses segmentos com seu público, a construção de pequenas redes de apoio, pautadas nas relações entre partes e sedimentada pelas plataformas digitais como canais de difusão, acolhimento e comercialização. A palavra de ordem que move este processo é a “sociariedade” entre os atores sociais, onde se observa dois movimentos distintos. O primeiro movimento é construído a partir de uma rede solidária construída pelos fregueses da atividade informal, visando a transferência de renda e a reprodução dos mesmos. Essa corrente está em curso em Belém, como certamente em outras cidades. Citamos a campanha Mãos Unidas para um grupo de camelôs situados na calçada do colégio da rede Marista, todos com nomes: Manoel do Brinquedo; Jaci da Pipoca, Roni do Hot Dog, Japonês do Bombom. Nesta mesma linha estruturou-se uma rede colaborativa para captar e doar cestas básicas para os alunos de famílias em vulnerabilidade socioeconômica da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará, com atividades suspensas, cujo objetivo é garantir a segurança alimentar aos estudantes e seus familiares. Alguns moradores de dois bairros centrais de Belém (Campina e Batista Campos), também se organizaram para arrecadar recursos para o Cury da Tapioca, vendedor ambulante que provavelmente já chegou aos 60 anos e passava diariamente por vários bairros da cidade vendendo seu produto, a tapioca molhada do Cury, que ao longo do tempo passou fazer parte do cotidiano dos moradores que compram, para tomar com um bom café da tarde. O segundo movimento é realizado por produtores que, impedidos de comercializar sua produção social, organizam-se em rede de colaboradores e passam a ofertar seus bens através das plataformas digitais ou outros que são incentivados e apoiados pelos seus compradores a utilizar os canais virtuais para divulgar e vender suas mercadorias. Sob este ponto de vista, citamos o caso de uma pequena cooperativa de produtores agrícolas de Belém, com origem e atividades nas ilhas do município. Para superar a impossibilidade de comercialização nas feiras e mercados esse grupo de agricultores familiares passou a ofertar suas mercadorias pelo aplicativo de mensagem instantânea WhatsApp, oferecendo a entrega em domicílio e sem cobrança de taxas. Neste caso destaque-se a construção de uma rede de divulgação com base nas plataformas digitais, mas, sobretudo, nas indicações de conhecidos. Nesta mesma linha, outro produtor rural, agindo isoladamente estruturou seu anúncio de comercialização usando como atrativo o fato de seus produtos serem orgânicos. Ele, também divulgando via WhatsApp conta com uma rede de apoio em grupos que midiatizam sua marca. Sem dominar as ferramentas digitais e com restrições na comercialização devido à crise, duas produtoras rurais do município de Santa Izabel (PA), foram adotadas por apoiadores que organizaram e deram uma identidade digital as mesmas, além de promoveram sua divulgação nos grupos, dando as devidas referências sobre a confiabilidade dos produtos e das agricultoras. Em consequência, as vendas das mesmas durante a semana estão fechando a ponto de nem conseguirem atender toda a demanda de entrega na capital, ou seja, a produção não ficou encalhada e elas não ficaram no prejuízo, apesar de não terem montado barraca na feira onde costumam vender. De outro modo, circula entre grupos de WhatsApp a Campanha “Compre dos Pequenos Comerciantes”, com objetivo de manter em funcionamento as pequenas mercearias ou lojas que atendem à demanda imediata dos moradores dos bairros ou no entorno desses estabelecimentos. Este é o caso do Fred, que é gestor de um pequeno restaurante no bairro da Campina, o Mania de Açaí, que, devido à Covid-19 está atendendo aos pedidos da vizinhança via WhatsApp e fazendo a entrega nas casas mediante uma taxa de R$ 2,00. A divulgação da comida do Mania de Açaí, que antes vivia lotado dos funcionários públicos que trabalham nas imediações, foi intensificada pelos moradores do bairro, o que está permitindo o seu funcionamento. O que se sobressai, neste momento, é que o uso das plataformas digitais não segue a linha da uberização, ou seja, rompe-se a cadeia do capital a partir de movimento autônomo e solidário que, mesmo com suas limitações, envolve esses atores sociais permitindo não somente a divulgação de seus produtos como também a continuidade de suas atividades, claro, com um grau menor em razão da crise. A incorporação das redes sociais digitais online como estratégia de comercialização se diferencia de acordo com a atividade e o perfil do seu público, seja o pequeno comerciante local ou o produtor rural, porém, o que há em comum é o movimento que representa a capacidade de romper a cadeia do intermediário ou atravessador (pequeno agricultor rural, extrativista de açaí, por exemplo) ao mesmo tempo em que consegue avançar, ao quebrar também a necessidade de se manter um ponto fixo para encontrar o mercado/consumidor (os pequenos restaurantes de bairro), oportunizando a continuidade – parcial ou plena – dos empreendimentos. Como ferramenta acessória, ainda no campo dos recursos digitais, está um fator que foi propiciado pelo o avanço da tecnologia digital de informação e comunicação a serviço do mercado financeiro que, para alavancar a bancarização, passou a ofertar serviços bancários em forma de aplicativos e da “maquininha” de cartão, o que, de certa maneira, iguala as oportunidades de venda do pequeno, até mesmo do informal, permitindo agregar à pequena economia, instrumentos que favorecem seus negócios, o que é relevante na atual situação de crise decorrente de pandemia, apesar de reforçar também o capital financeiro que incorpora, nos seus ativos, os recursos movimentados pelas pequenas atividades. Os movimentos observados trazem à tona uma velha e atual discussão: a diferença entre cliente e freguês, pois cliente não tem nome, já freguês tem nome. O ato de compra e venda entre o cliente e o vendedor não é permeada de afeto, já a relação entre o conhecido freguês com o seu fornecedor, é. Essa nuance parece configurar-se, em tempos de Covid-19, num aspecto determinante para a construção da rede de apoio e solidariedade em torno da manutenção de pequenos negócios formais ou não, urbanos ou rurais, não somente em Belém, como no Brasil. É a partir do freguês e da pessoa que gesta a pequena atividade, alguém que se conhece por nome ou apelido, que se torna possível estruturar caminhos alternativos para manter-se o pequeno negócio, a economia popular. Neste aspecto, o diferencial, justificando a mobilização digital observada para romper o isolamento e amenizar as perdas, o que é extremamente importante num cenário de desigualdade social como o do nosso país, é a referenciação ao conhecido. Em contraponto à lógica do grande capital, o ponto interessante é que essas ações, autônomas e distintas do consumo pelo consumo, assumem um caráter não somente de resistência para além da lógica do consumismo, como torna possível uma outra economia, cuja base estrutural está além da mesma, pois procura constituir, a partir de relações sociais estabelecidas, um desenvolvimento, sustentando de forma cooperada e colaborativa entre os atores sociais, pautada no ganho coletivo, na reprodução social e na valorização do trabalho. Isso é fundamental para romper o contexto que hoje está posto, o que faz lembra a letra da música “Menino das Laranjas” (Geraldo Vandré, 1964): Lá, no morro, a gente acorda cedo/E é só trabalhar/E comida é pouca e muita roupa/Que a cidade manda pra lavar/De madrugada, ele, menino, acorda cedo/Tentando encontrar/Um pouco pra poder viver até crescer/E a vida melhorar/Compra laranja, doutor/Ainda dou uma de quebra pro senhor!/Compra laranja, doutor/Ainda dou uma de quebra pro senhor!/Compra laranja, laranja, laranja, doutor/Ainda dou uma de quebra pro senhor. Apesar de muitos ainda não terem nome e a realidade da letra é quase a mesma quase sessenta anos depois, muitos passaram a ter nome diferente do “menino da laranja”, como o Cury, Clea e Cellen, Manoel, Jaci, Roni, Fred, Chico, Sinésio e por aí vai. *Luís Flávio Maia Lima é economista, doutor em Economia e professor *Guaciara Barbosa de Freitas é jornalista, doutora em Comunicação consultora * Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.