Alô, alô, marciano... Estou cada vez mais down!

Na Fórum Folia de hoje Estevan Mazzuia homenageia Elis Regina, que há 39 anos nos deixava, a partir do desfile de 1.989 da Mocidade Independente de Padre Miguel.

Foto: Redes sociais (edição de imagens)
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Por Estevan Mazzuia *

Como nossa saudosa Elis Regina mandaria recado para os contatos interplanetários vivendo nessa mixórdia do Brasil de Bolsonaro?

Alô, alô, marciano... Aqui quem fala é da Terra. Pra variar, estamos em guerra... Você não imagina a loucura, o ser humano tá na maior fissura por cloroquina, porte de arma, Olavo de Carvalho... 

Ainda bem que me mandei. Não suportei a ignorância no comando, a violência a impor as verdades de “pensadores” maniqueístas... E tá cada vez mais “down” o “high society”. 

Eu estava conversando um dia desses com meus amigos Rita e Roberto, que me deram a ideia de te escrever, pra desabafar. Pedir uma ajuda pra quem ainda tá aqui no outro plano, sei lá... Cansei de ser sozinha. 

Hoje está fazendo 39 anos que me mandei, mas parece que acabou de acontecer. O planeta girou, girou, e agora parece que resolveram passar um rolo compressor sobre ele. Tem gente até dizendo que a Terra ficou plana como uma pizza. Uma gente que ri quando deve chorar. 

Até tive umas alegrias nesse período, sabe... Por exemplo, fui enredo de carnaval diversas vezes, acredita? Até na Sapucaí, com a Mocidade Independente de Padre Miguel, em 1989. Maior barato, marciano. 

A comissão de frente trazia meus grandes amigos, Aldir, Miele, Jair, Betinho, Wanderleia, Renato... Quase todos já meteram o pé também. Só o Renato e Wandeléa seguem vivendo e aprendendo a jogar. Foi o último ano que a escola se apresentou com uma comissão de frente tradicional, vestida de gala. Estavam lindos. Mas os jurados não gostaram, deram três notas 8... 

O que eu não curti nada foi o abre-alas. Porra, tinham logo que falar do fatídico dia que me obrigaram a cantar o hino nacional nas Olimpíadas do Exército? Aí o Henfil me enterrou ao lado do Simonal... Morta-viva? Ah não, marciano. Isso é o fim do caminho! 

Dei o meu melhor na interpretação de “O bêbado e a equilibrista” e calei a boca dessa gente chata. Cancelei meu cancelamento, quá-quá-quá-quá-quá... 

Eu adorei uma ala que trazia o pessoal vestido de microfone... Muita criatividade de Ely Peron e Rogério Figueiredo. E a bateria, do Mestre Jorjão, que ficou famosa pelas paradinhas do tempo do Mestre André? Estava linda, lembrando “O Trem Azul”... Foi muita fascinação!  

O Clodovil, que me convenceu a usar orquídeas no cabelo em Montreux, vinha no carro que lembrava o festival onde fui aplaudida por 20 minutos. As baianas faziam referência a “Falso Brilhante”, meu show que ficou um ano e meio em cartaz. 

Outro carro revivia o agito boêmio do Beco das Garrafas... Ah, marciano, Copacabana nunca mais seria a mesma. Que saudades... Os Dzi Croquettes estavam lembrados ali... Nada mais justo. Foi o Lennie que mandou eu ficar girando meus braços freneticamente... E não é que ficou bom pra caramba?  

Até você estava lá, marciano. No carro que trazia minha escultura. Eu estava um pouco estranha, meu peito parecia uma “tauba” de tiro ao “álvaro”. Não vou reclamar muito, se não você também vai me chamar de Pimentinha. Você também não estava lá essas coisas, viu? 

Infelizmente, a escola nem chegou perto do título. Além da comissão de frente, os jurados também pegaram pesado com alegorias e enredo. Alegorias, depois da escultura, até entendo, mas enredo? Peraí! 

Mas tudo bem. Aquele ano foi mágico mesmo. A Imperatriz, com aquele desfile chapa branca, exaltando o milico Deodoro e a Princesa Isabel, até que passou bem mesmo. E teve aquele maluco do João, com os mendigos na avenida... “Mesmo Proibido, Olhai Por Nós”. Eu me arrepiei, marciano, ao ver aquela imagem do Cristo Redentor coberto por um saco preto. Ah, a hipocrisia cristã. Tá super na moda por aqui ainda, acredita? Voltou com tudo, viu? Agora a turminha desfila por aí fazendo arminha com a mão. Até tira foto com os filhos fazendo o tal gesto. Em nome de Jesus! Nossa Senhora Aparecida! 

Teve ainda a “festa profana” da União da Ilha”, teve a Vila Isabel, metendo um “direito é direito” na cara da sociedade. Sociedade que deu de lutar pelo fim dos seus direitos... Olha, o meu peito percebeu: pra mim, não deu, e não daria mais. 

A crise tá virando zona. Cada um por si, todo mundo na lona... Muita patrulha, muita bagunça. E tem sempre um aiatolá pra atolar. Alá! Eu, hein! Pra aturar, só mesmo uma casa no campo, pra curtir a dignidade de um mestre-sala. 

Como bem disseram Cadinho, Dico da Viola e Paulinho Mocidade, autores do samba que embalou os foliões em minha homenagem, “agora sou uma estrela, trago um sorriso de amor e de verdade”. Ainda bem. 

Mas me machuca muito, marciano, saber que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos pais. 

Tá cada vez mais down, o high society... 

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.