Apagar as contas de Trump nas redes sociais é queima de arquivo, por Yuri Soares Franco

Comunicação não é apenas emissão de informação, mas interação. Em uma pesquisa séria sobre o debate público em ambientes virtuais nos últimos anos, não basta saber o que Trump disse, mas também as repercussões das suas falas em seus perfis

Foto: Redes sociais
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Por Yuri Soares Franco *

Após anos de permissividade, as empresas diretamente responsáveis pelo aumento das notícias falsas (fake news) e da disseminação de ideais fascistas na internet resolveram bloquear ou simplesmente apagar os perfis de Donald Trump. Sabe quem perde com isso? A memória, a história e a democracia.

É mais fácil simplesmente apagar tudo e fingir que nada aconteceu ali nos últimos anos? Sim, é mais fácil e até confortável tentar esquecer um personagem e um período tão doloroso, mas é perigoso e contraproducente. Não dá para ignorar que Trump teve ainda mais votos nesta eleição, na qual foi derrotado, do que na eleição em que saiu vitorioso, e que seus apoiadores realizaram uma grande demonstração de força no final de seu mandato. Biden assume um país dividido e com sua legitimidade questionada por amplas parcelas da população. Ignorar isso e resumir a política apenas a cargos institucionais, contando cadeiras na presidência e no Congresso é um equívoco gigantesco.

Portanto, faz-se necessário pesquisar mais a fundo como Trump chegou ao governo e como foi seu mandato. Não apenas sob a ótica das leis, dos atos governamentais e das disputas institucionais, mas também das classes e grupos sociais e das movimentações políticas, culturais e mesmo psicológicas na sociedade estadunidense (e brasileira, no caso de Bolsonaro).

É impossível compreender a história recente dos EUA sem analisar a comunicação realizada nas redes sociais de Trump e de alguns de seus apoiadores. O que estamos assistindo é uma verdadeira queima de arquivo de fontes históricas da mais alta importância.

De todas as punições que Trump recebeu, a mais radical até o momento foi feita pelo Twitter, que suspendeu permanentemente a conta do presidente e tirou do ar seu perfil e todas as suas mensagens.

Algumas iniciativas foram feitas para guardar estes arquivos (www.thetrumparchive.com). Ao analisar estas plataformas, percebe-se que estas possuem todas as postagens de Trump, mas não as interações em seu perfil (comentários, retweets, compartilhamentos com comentários e outras métricas). Ainda não está claro se o Twitter irá manter fora do ar todo este conteúdo de forma permanente, ou se pode vir a criar uma espécie de memorial, o que seria o mais recomendável.

Comunicação não é apenas emissão de informação, mas interação. Em uma pesquisa séria sobre o debate público em ambientes virtuais nos últimos anos, não basta saber o que Trump disse, mas também as repercussões das suas falas em seus perfis. Quem comentou? O que falou? Quem compartilhou?

Com esta ação extemporânea, as empresas buscam dois objetivos: primeiro, passar a imagem de "comprometidas com a democracia e o debate público saudável", e em segundo lugar, fingir que elas não tiveram nada a ver com o que foi feito até aqui e com a situação na qual nos encontramos. É cômodo para os donos destas empresas tentar passar uma borracha na história, mas cabe a nós denunciarmos isso!

É claro que as redes sociais não devem ser um espaço sem regras. O problema é deixar a regulamentação do debate público à mercê de empresas privadas multinacionais. Para nós piora o fato destas serem empresas estrangeiras sobre as quais não temos nenhum controle.

Uma medida correta seria Trump ser punido pelos crimes cometidos nestas redes sociais: divulgação de mentiras, uso de robôs para manipular a opinião pública, incitação à violência, tentativa de golpe, dentre tantos outros. O bloqueio dos seus perfis também seria importante, impedindo-o de publicar novas mensagens e de outros usuários compartilharem e comentarem seus posts. Seria uma espécie de “congelamento” destes perfis, que já não pertenceriam mais nem ao Trump nem às empresas, mas que precisam estar ali, públicas, para que os cidadãos e pesquisadores possam acessar o debate realizado nestes espaços, antes e durante seu governo. Um exemplo de ação neste sentido foi realizado pelo Facebook e pelo Instagram, bloqueando novas postagens e impedindo Trump de utilizá-las, mas mantendo intacto e público o histórico de publicações.

Se estas empresas estão tão comprometidas com o debate saudável por qual motivo elas esperaram que Trump perdesse as eleições para tomar essas atitudes? Por que não estão fazendo nada em relação a Bolsonaro que já anunciou publicamente que irá trilhar o mesmo caminho de questionamento do processo eleitoral em 2022?

O fato de as instituições públicas não estarem funcionando, nem nos Estados Unidos e nem no Brasil, não é motivo para nos entregarmos ao escrutínio extrajudicial de empresas. É mais um motivo para debatermos publicamente a necessidade de regulamentações legais sobre as plataformas digitais, para garantir que a internet seja um espaço de debate saudável e democrático.

É preciso controlar o poder das empresas bilionárias, de políticos e demais indivíduos que eventualmente cometam crimes. A impunidade civil e penal é o maior incentivo para a atuação de setores que mentem e manipulam as redes das mais variadas formas. Até agora, cometer todo tipo de crime na internet para vencer eleições e manter apoio político durante o mandato tem compensado, e muito.

Precisamos avançar no debate da democratização da comunicação, do direito de acesso à informação e da necessidade de se preservar os registros digitais, especialmente de governantes. Regulamentações nacionais e internacionais sobre as plataformas e os conteúdos nelas veiculadas são urgentes, sob o risco de vermos ruir as democracias perante a barbárie de uma terra digital sem lei.

“A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer” – Peter Burke

* Yuri Soares Franco é mestre em História pela Universidade de Brasília e professor da SEEDF.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.