Ascânio Seleme jogou a bola para o PT. Qual será a atitude do partido?; por Evilázio Gonzaga

"O que está bastante evidente no artigo é a sinalização de que a direita tradicional – seja liberal, conservadora e fisiológica – precisa do PT e de Lula, para combater o monstro que eles próprios criaram: o bolsonarismo"

Foto: Ricardo Stucker
Escrito en DEBATES el

Por Evilázio Gonzaga*

O artigo do jornalista Ascânio Seleme, “É hora de perdoar o PT”, publicado no jornal O Globo, gerou intenso debate nos meios políticos no Brasil. Causou surpresa por um lado e, de outro, estranheza e, também, uma reação raivosa de figuras e bases do PT. Porém, o que muitos não perceberam foi o silêncio das principais personalidades políticas do país, que se colocam publicamente em oposição a Bolsonaro. Não se viu nenhum comentário de Rodrigo Maia, Dória, FHC, Gilmar Mendes e outras lideranças políticas. Nem mesmo Lula, que personaliza o destinatário da carta-artigo, falou sobre o assunto.

Aos observadores mais atentos, a impressão é que há engrenagens em movimento, distantes dos olhos dos cidadãos comuns. Seleme não publicaria um artigo que certamente causaria enorme repercussão sem a aprovação dos seus patrões, por maior que seja a sua liberdade editorial.

O que se pode perceber no episódio?

O que está bastante evidente no artigo é a sinalização de que a direita tradicional – seja liberal, conservadora e fisiológica – precisa do PT e de Lula, para combater o monstro que eles próprios criaram: o bolsonarismo.

Algumas palavras do artigo soaram às bases petistas como um insulto. Porém, no grande jogo da política os movimentos significam mais do que as palavras, que são ditas para o consumo do grande público. Independente das palavras, é evidente movimento de tentativa de aproximação com o PT, partindo da direita.

O que a direita tradicional pretende com o gesto?

Provavelmente, liberais, conservadores e o centro fisiológico tradicional desejam retirar do jogo político a não política.

O que é a não política?

O bolsonarismo introduziu no ambiente da disputa pelo poder no Brasil grupos com pouca ou sem nenhuma referência na democracia, nem mesmo na sua vertente liberal. São facções compostas por indivíduos que criticam a política, para fazer política. A maioria dessas pessoas atuou e prosperou na política tradicional, no campo fisiológico, como o próprio Bolsonaro e sua família. O núcleo do bolsonarismo é uma aliança entre uma parcela dos militares reformados e da ativa das Forças Armadas (não é possível precisar o tamanho da influencia bolsonarista); as milícias que tiveram origem no Rio de Janeiro; as corporações armadas, principalmente as polícias militares, que formam conjuntamente um imenso exército de quase 500 mil policiais; o fundamentalismo cristão (evangélico ou católico); e os pequenos grupos fascistas inspirados pelo astrólogo picareta Olavo de Carvalho.

Bolsonaro mantém uma aliança com os fundamentalistas cristãos, intermediada pela direção de cada grupamento religioso (pastores ou padres), sendo sua base real as corporações armadas e o olavismo.

A relação com as Forças Armadas, também, é mediada pela alta oficialidade, que cuidou de fortalecer a disciplina interna, preocupada com a influência bolsonarista. 

Por outro lado, a relação do ex-tenente – promovido a capitão, como parte do acordo para a sua saída do exército sob acusação de indisciplina, terrorismo e deficiência intelectual – com as corporações armadas policiais é direta, sem intermediários, diferente do que ocorre o fundamentalismo ou as Forças Armadas.

O olavismo, após o antipetismo histriônico deixar de ser útil, não conta na disputa real pelo poder. 

Este ajuntamento de grupos, com diversos interesses e formas distintas de ver o mundo, é cimentado por algumas ideias forca: o autoritarismo, a apologia à violência (que inclui a adoração às armas de fogo), o ódio insano à esquerda (que a maioria deles nem sabe o que é), o falso moralismo rasteiro, uma forma obtusa de cristianismo  e a concordância de que para obter os seus objetivos tudo vale, inclusive a mentira.

À parte desses seis elementos, há profundas diferenças e, mesmo, divergências entre os grupos. Por exemplo, os militares mantêm uma visão da política externa cínica, pragmática e bastante diferente dos olavistas e fundamentalistas. A maioria da alta oficialidade das Forças Armadas considera que devem ser colocados limites na confrontação com a China e questiona a necessidade de instalar a embaixada brasileira em Jerusalém, posições defendidas por olavistas e fundamentalistas

O que mais incomoda à direita tradicional, liberal, conservadora e fisiológica é a introdução na política, pelo bolsonarismo, de elementos que eles não controlam e que pode extinguir o ambiente no qual eles prosperaram, pelo menos desde a queda de Getúlio Vargas. Entre os elementos introduzidos pelo bolsonarismo, que não são nada novos, os mais preocupantes, para as forças políticas tradicionais do país são a ameaça das armas, a militarização das bases de apoio, a insistência de manter as ruas mobilizadas e a manipulação em alta escala das novas tecnologias de comunicação.

As ruas para a direita tradicional somente são bem-vindas, quando absolutamente controlada por seus agentes, como foi a Passeata com Deus e a Família, em 1964; ou as micaretas contra Dilma Rousseff, convocadas pela mídia corporativa, centralizada pelo Grupo Globo.  

Incomodados pelo estilo outsider de Bolsonaro, que se mantinha distante das lideranças tradicionais) e, principalmente, temendo o crescente risco representado pelo ex-tenente aos grandes negócios (o ostracismo do país e a demolição do mercado interno), os líderes da direita tradicional – no campo político ou corporativo – iniciaram as conversas de bastidores para o afastamento do bolsonarismo do jogo político. As movimentações práticas começaram com as decisões de Celso de Mello e desencadearam uma série de ações, que resultou entre vários outras consequências na saída de Sérgio Moro do superministério da Justiça.

Embora o ex-juiz provinciano também seja um outsider, líder do pequeno grupo que integra a força tarefa da Lavajato, operação contra a qual se acumulam as provas de traição ao Brasil, ele possui sensores mais desenvolvidos do que os de Bolsonaro. Assim, o juiz suspeito de colaborar com uma potência estrangeira, para trair o país, foi avisado de que era hora de abandonar o barco.

Bolsonaro e seu círculo íntimo, que se resume à família – e provavelmente alguns milicianos – sentiu o peso doa acontecimentos e não há dúvida de que pensou em dar um golpe armado. Alguns generais do governo, preocupados em serem obrigados a abandonar o osso, chegaram, em um primeiro momento a atuar, porém se limitaram a rosnar ameaças.

Esses generais da cozinha palaciana provavelmente tinham conhecimento de que o apoio irrestrito ao governo bolsonarista – chagando a ir contra a constituição e apoiando um golpe – não tinha o apoio consensual das três armas. Portanto, um golpe seria uma aventura temerária e certamente fadada ao fracasso.

Sem o apoio das Forças Armadas, restaria ao bolsonarismo contar com a massa das polícias militares, que o apoiam com muito menores restrições do que o exército, a marinha e a aeronáutica. As PM’s formam uma força considerável de quase 500 mil tropas espalhadas por todo o país. Para comparar, o contingente total das Forças Armadas é de 334 mil efetivos.

Porém, apesar do grande contingente, as 27 polícias militares estaduais carecem de organicidade nacional que as integrem como uma força combatente, além de não contarem com armamento pesado. Dessa forma, são como pequenos exércitos espelhados pelo país. Uma rebelião desta corporação armada, seria rapidamente derrotada, embora pudesse causar danos terríveis à população.

Pressionado pela realidade e percebendo sua fragilidade política e de seu suposto esquema militar, Bolsonaro foi obrigado a recuar e a se enquadrar a um figurino mais controlado. Cessaram os ataques ao STF e ao Congresso, embora o besteirol, que isola cada vez mais o país continue.

Porém, Bolsonaro e seus seguidores permaneceram relativamente calados, mesmo quando a justiça brasileira e o Facebook atacaram fundo seus aparatos de produção de fakenews em pirâmide. Exceto uma ou outra reclamação bastante comedida, para os padrões bolsonaristas, o desmantelamento do sistema de internet comandado por Carlos Bolsonaro foi engolido. Carlos anunciou que sai de cena e boatos indicam que ele irá mudar para os Estados Unidos.

Nem mesmo a prisão de Queiroz elevou a níveis insuportáveis (do ponto de vista da direita tradicional) as reclamações bolsonaristas. Alegando ter contraído a COVID19, o presidente mantém um retiro obsequioso e se mantém em silêncio para os seus padrões.

O processo de enquadramento de Bolsonaro ocorreu sem participação da esquerda. Foi uma conspiração de bastidores, que levou a uma série de movimentos manejados pelo sistema judiciário, incluindo aí o STF, a justiça do Rio de Janeiro, o MPF, o MP do Estado do Rio de Janeiro, a PF e a polícia civil fluminense. Todas as ações judiciais contaram com o apoio dos principais veículos de comunicação corporativa, como as Organizações Globo, o Grupo Folhas, e Estado de São Paulo e o Grupo Bandeirantes, entre outros. O apoio dos presidentes do Senado e da Câmara, também foi explícito.  

Porém, mesmo enquadrado, não se sabe por quanto tempo, a direita tradicional sabe que Bolsonaro não é uma fera morta. Está apenas ferida. Muito ferida, mas pode se recuperar. Além disso, afastar o presidente acusado de terrorista, quando era tenente do exército, significa excluir os militares dos imensos espaços institucionais de poder que ocuparam. Vai exigir ainda a restrição dos limites do fundamentalismo, para romper o ostracismo do país, assim como será necessário o enquadramento das polícias militares em algum grau, para reduzir a violência, que desmoraliza o país nos fóruns internacionais de direitos humanos e responsabilidade social.

Isso significa que a aliança bolsonarista somente será retirada do poder caso exista uma grande maioria na sociedade brasileira, capaz de se contrapor amplamente aos grupos violentos que o apoiam. Uma retirada via cassação ou impeachment – que hoje parece mais distante, porque a direita tradicional, após enquadrar Bolsonaro, não parece disposta a se arriscar a uma situação de confronto – exige completo domínio das ruas, das redes e das narrativas. Isso, em um ambiente onde os confrontos com as polícias podem ser violentos.

Por outro lado, a alternativa eleitoral também exige uma derrota esmagadora do bolsonarismo, pois um resultado apertado pode atiçar seus apoiadores violentos e armados, levando o país a uma conjuntura extremamente perigosa, na qual, com quase certeza sobrevirão mortes.

A direita parece desejar a normalização do ambiente de negócios e, pelo desenrolar dos acontecimentos, provavelmente considera que o afastamento de Bolsonaro é necessário para atingir essa meta. A serem corretas essas duas hipóteses, os políticos tradicionais liberais, conservadores e fundamentalistas sabem que, embora tenham conseguido enquadrar – pelo menos temporariamente o presidente outsider – a sua remoção da política não será fácil. Será preciso estabelecer alianças táticas, para obter uma maioria esmagadora sobre o bolsonarismo na sociedade brasileira.

Para obter esta aliança e a pacificação do país, o que é essencial para os negócios, a direita tradicional parece estar propondo zerar o jogo, reestabelecendo o cenário anterior a 2013. Embora em um artigo com uma linguagem hermética, que lembra os discursos diplomáticos e jurídicos, onde a intenção vale muito mais do que as palavras, o conteúdo do texto publicado no Globo provavelmente é uma autocrítica e um pedido de desculpas ao PT.

Considerando o grande jogo, aquele que nós cidadãos comuns não conseguimos ver, sabemos é que o PT também concorda que o afastamento de Bolsonaro é essencial, embora o partido não esteja preocupado, prioritariamente, com o ambiente de negócios e, sim, com os tragédias dolorosas que atingem os brasileiros.

O PT concorda com o afastamento do presidente miliciano. Suas principais lideranças também percebem que Bolsonaro somente será alijado do poder por uma maioria esmagadora na sociedade, contra o bolsonarismo violento e perigoso. Então, qual será a reação do partido ao gesto de aproximação da direita tradicional, que pretende taticamente zerar o jogo, para começar tudo de novo?

*Evilázio Gonzaga Alves é jornalista, publicitário, especialista em marketing, opinião pública e mídias digitais. Estudioso assíduo de história, geopolítica e estratégia militar

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum