Autoritarismo e exclusão no Ensino a Distância no Rio de Janeiro, por Pedro Mara

"A crítica se dirige a um dos maiores estelionatos educacionais, que tenta validar como dia letivo e contabilizar como carga horaria atividades que ignoram, por exemplo, a exclusão digital de quase metade dos alunos da rede"

Foto: Agência Brasil
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Por Pedro Mara*

A pandemia da Covid-19 paralisou o mundo inteiro. A Unesco estima que 80% dos estudantes do globo estão sem aulas – o que corresponde a 1,37 bilhão de alunos – por conta da situação de emergência global. Tão logo a pandemia foi anunciada, governos e empresários se apressaram a defender o ensino remoto. Após quase dois meses de medidas de isolamento no Brasil – com iminente colapso do sistema de saúde – e sem perspectivas seguras de uma provável data de retorno das aulas presenciais, aumenta no Rio de Janeiro a pressão por ensino remoto como uma “salvação” para o ano letivo, inclusive com o crescimento do assédio aos docentes para entrada na plataforma e um terrorismo psicológico sem precedentes com os alunos, ameaçados (discreta e, em alguns casos, abertamente) com reprovação.

O entendimento da MP 934, no início de abril, já caminhava na direção de flexibilização do mínimo de 200 dias letivos obrigatórios. O Conselho Nacional de Educação, por sua vez, considera desde o final de abril a possibilidade unificação dos calendários letivos de 2020 e 2021. No mesmo documento, por exemplo, o CNE ainda indicou três opções para a reposição da carga horaria do ano letivo: (1) reposição presencial integral no pós-covid; (2) ampliação da carga horária diária no período presencial com realização de atividades não presenciais; (3) atividades remotas no período pandêmico e aulas presenciais a posteriori.

Não ignoramos o fato de que o logo período sem atividades regulares influenciará o agravamento do quadro trágico de evasão escolar que é uma realidade no Rio de Janeiro, tampouco ignoramos a possibilidade de retrocesso na dinâmica de aprendizagem ou que o pós-Covid tende a reforçar o mapa da desigualdade nas favelas e periferias fluminenses. As criticas à implementação do ensino remoto não tem a finalidade de impedir uma plataforma digital com conteúdos disponibilizados para acesso dos alunos. Ao contrário, a crítica se dirige a um dos maiores estelionatos educacionais, que tenta validar como dia letivo e contabilizar como carga horaria atividades que ignoram, por exemplo, a exclusão digital de quase metade dos alunos da rede – que no caso do Rio de Janeiro se expressa no baixíssimo retorno dos trabalhos postados na plataforma, que é menor quanto mais pobre é a realidade da escola que está inserida.

Hoje mesmo olhei o retorno das atividades numa escola no Complexo da Maré e em uma turma de primeiro ano do ensino médio nenhum aluno dos quarenta e dois matriculados havia retornado atividades.

Este é o pano de fundo do projeto autoritário e excludente sob a roupagem de ensino remoto que está em implementação na rede estadual do Rio de Janeiro – que atende aproximadamente 700 mil estudantes. Em meados de março o governador, por meio do Decreto 46973, suspendeu as aulas nas escolas públicas e privadas, como uma das medidas de isolamento. Na mesma data o secretário de educação, o dentista e ex-deputado Pedro Fernandes, antecipou o recesso quinzenal da última metade de julho, sem qualquer perda de dias letivos e, em live realizada no dia 23 de março, anunciou (sem diálogo com as escolas ou qualquer instituição) o início de atividades não presenciais e um contrato com o Google (que até o momento não foi tornado público). A proposito, a falta de transparência chega ao limite quando o site da Secretaria de Educação foi desativado e os anúncios ocorrerem nas redes sociais pessoais do secretário de educação.

A pouca ou nenhuma regulamentação do ensino remoto é uma das evidências desse projeto autoritário. Na Alerj um PL foi criado para autorizar o Poder Executivo a implementar uma plataforma virtual, mas os próprios deputados autores retiraram a proposta da pauta quando o próprio secretário de educação faltou na audiência pública promovida com a finalidade de debater o projeto.

A falta de transparência e a iminente exclusão de parte significativa do alunado levaram o Ministério Público e a Defensoria Pública a recomendarem a suspensão da plataforma digital e deram prazos para Secretaria de Educação apresentar explicações. O MP em outro momento ajuizou ação civil pública reivindicando que as atividades na plataforma não fossem computadas como dias letivos ou carga horária – esta última negada pela Justiça. Até o momento apenas quatro documentos oficiais foram apresentados: três circulares internas – que orientam procedimentos administrativos, mas não possuem força para regulamenta-los – e um Plano de Ações Pedagógicas – este último uma exigência do Conselho Estadual de Educação para reconhecimento de atividades não presenciais.

Além da condução autoritária e da frágil regulamentação, o ensino remoto que está sendo implementado na rede estadual possui significativo aspecto excludente que nem de longe pode ser minimizado ou negligenciado. Esta proposta de ensino remoto fere a garantia do direito universal à educação, com inclusão e em igualdade de condições. A solução proposta pela Seeduc é o envio de chips para o acesso à internet – como se o problema fosse reduzido aos dados de um celular que nem todos possuem – e material impresso para alunos que não possuem acesso à internet. Em ambos os casos até o momento não ocorreu a entrega desses materiais.

Ao custo de mais de R$ 1 milhão de reais, foi celebrado acordo com a TV Bandeirantes para exibição de conteúdo na TV aberta com horário e dia na programação. O horário escolhido não poderia ser pior: às 6 horas da manhã. Dificilmente milhares de alunos acordarão na madrugada para assistir aquele conteúdo. A parceria com a TV Futura, controlada pela Fundação Roberto Marinho e apoiada por grandes grupos empresariais, possui o mesmo sentido. Trata-se de uma iniciativa açodada, cara e de resultado pedagógico bastante discutível.

A formação dos profissionais – um dos maiores desafios para o “sucesso” de uma iniciativa desta envergadura – para o ensino remoto será em processo. Ou seja, os docentes aprenderão a operar a plataforma e suas “potencialidades” no percurso do trabalho. Pior ainda, a formação (durante e pós-covid) dos profissionais da educação será mediada e inspirada na plataforma Google LLC. Acentua-se o fetichismo tecnológico, como se os problemas históricos da desigualdade social na educação pudessem ser equacionados por intervenções tecnológicas.

A SEEDUC, no afã de validar o período como um dia letivo – um grave equivoco – indicou que contabilizará as atividades da plataforma (e também as que estão fora) para fins de avaliação, que devem ser realizada de forma diversificada. O controle da frequência ficou sob responsabilidade de decisão nas escolas. Parece que um vale-tudo educacional foi autorizado. E parece que está em curso um endurecimento e assedio aos profissionais e alunos para elevar os índices da plataforma.

Por último, há uma importante batalha que está sendo travada pela hegemonia e disputas de narrativas. O secretário tenta fazer crer que ele é o único preocupado com nossos adolescentes e crianças que estão sem aula, propondo atividades on line no período da pandemia. É preciso também disputar este afeto dos alunos. Do nosso lado, dos que defendem a escola pública, gratuita e de qualidade, sem interferências empresariais, é preciso ter cautela e inteligência porque a disputa está sendo feita para fora da escola – com a sociedade. É preciso pontuar que não somos contrários a estabelecer vínculos virtuais neste período, mas sim contra um projeto que agrava as desigualdades sociais e excluirá milhares de alunos e alunas das zonas pobres do Rio de Janeiro.

*Pedro Mara é professor da rede estadual do Rio de Janeiro no Complexo da Maré e Complexo do Alemão. Ex-diretor eleito de escola na Baixada Fluminense

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum