Barbárie “à brasileira”, por Michel Zaidan Filho

A ideia do campo de concentração é uma grande alegoria social adequada aos tempos “de cólera” em que vivemos: os espaços de sociabilidade foram reservados para poucos

Jair Bolsonaro - Foto: Reprodução
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Por Michel Zaidan Filho(1)*

“Hoje, só se pode alimentar a esperança em nome dos desesperançados”. (Walter Benjamim).

O apresentador de uma conhecida emissora de TV brasileira, cujo dono é judeu, sugeriu que fossem criados campos de concentração no país, para internação das pessoas contaminadas pelo coronavírus. 

Não é a primeira vez que se fala nesse tipo de providência entre nós. Em Pernambuco, a família Lundgren (Casas Paulistas), durante a Segunda Guerra Mundial, manteve campos de concentração para minorias judaicas no estado (2).  E a escritora Rachel de Queiroz alude à existência de “currais”, onde os flagelados da grande seca de 1915 eram confinados (3).

A proposta é sintomática da patologia social e política que tomou conta de parte da população brasileira, nas últimas eleições presidenciais. A ideia de um espaço concentracionário na sociedade moderna (panóptico) não é nova. Surgiu de um autor utilitarista inglês, Jeremy Bentham, e foi apropriada por um filósofo contemporâneo chamado Michel Foucault, numa obra intitulada “Vigiar e Punir”. Segundo eles, as sociedades modernas são dominadas por uma lógica concentracionária e uma modalidade onimoda de poder (Big Brother) presente nas escolas, nas fábricas, nos hospitais, nas prisões etc. Paradoxalmente, teria sido graças a essa lógica, que teria nascido o “indivíduo disciplinar”, o cidadão moderno (4). 

A questão que se coloca é como transpor essa teoria para a sociedade brasileira. Existe ou não uma sociedade disciplinar, panóptica, concentracionária, semelhante à europeia ou norte-americana? - Sobre este ponto, as opiniões se dividem: uns, como o professor Luciano Oliveira, duvida muito dessa hipótese; e ele nem precisa recorrer à famosa tese da malandragem no Brasil. Estudioso da sociologia jurídica entre nós, acostumou-se a pesquisar as formas “alternativas” de prestação da justiça entre nós (veja o seu livro: “Sua excelência, o comissário”) (5). Outros abraçaram simplesmente a tese foucaultiana e transpuseram - sem mais - a ideia de que a sociedade é um enorme cárcere sem grades, onde a pessoa introjeta a autoridade em si, tornando-se sua própria polícia. Essa tribo é grande e são muitos os historiadores e cientistas sociais que se agarram a ela.

Na verdade, a sociedade brasileira parece um hibrido institucional composto da malandragem pragmática e da lógica concentracionária. Embora possa se dizer que a ideia da concentração social tenha avançado muito no Brasil, a par de uma modalidade de biopolítica ou necropolítica voltada para a eliminação dos mais fracos, a tese antropológica da malandragem persiste, sobretudo na elite social (6).

Quando se afirma que a tese do espaço concentracionário avança, ente nós, é no sentido de que ela assumiu recentemente  traços neofascistas que se manifestam não só nessa cultura misógina, homofóbica e racista entre religiosos das igrejas pentecostais e neopentecostais, mas acima de tudo no formato das políticas públicas adotadas pelo atual governo, inspiradas na suposição de que “os pobres e miseráveis já não têm lugar nenhum na história e na sociedade” (Oliveira) e, portanto, devem ser eliminados (7). Ou seja, não há porque se incomodar mais com eles e “gastar” recursos públicos com esses.

Reorientar a política social e fiscal no sentido de remunerar os investimentos especulativos e rentistas do grande capital apátrida e seus associados no país. Como disse o chefe do executivo, que as famílias cuidem de seus idosos, doentes e miseráveis. Essa não é mais a função prioritária do Estado de “direito democrático”. Daí a caçar e prender os recalcitrantes que teimam em contaminar o resto da população sadia e consumidora, é só um pequeno salto.

A ideia do campo de concentração é uma grande alegoria social adequada aos tempos “de cólera” em que vivemos: os espaços de sociabilidade foram reservados para poucos. O contingente humano excedente deve ser eliminado, já que não pode ir para as câmaras de gás. É a revivescência do antigo “darwinismo social”, a tese da seleção natural e da sobrevivência dos mais aptos, posta em prática por um tipo de neoliberalismo de tinturas nazistas, abençoado pelas igrejas que veem no verdugo um emissário de Deus.

Notas de rodapé:

1 - O autor tem abordado esse tema em palestras, ensaios e artigos. Entre eles, “Neoliberalismo e Estado”, palestra proferida na semana das Ciências Sociais, na UFRPE, em 2019. “O capitalismo como pandemia mundial”, portal eletrônico de notícias Brasil 247. Fica aqui o registro de importantes contribuições como a do ensaio do professor Luciano Oliveira: “Neofascismo, Neomiséria”. “Política Hoje”. Recife, editora Bagaço, 2000, Pierre Dardot e Christian Laval. “A nova razão mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”. São Paulo, Boitempo, 2016. As últimas obras de M. Foucault que tratam da biopolítica e do biopoder: “Em defesa da sociedade”. São Paulo, Martins Fontes, 2002 e “O nascimento da biopolítica”. São Paulo, Martins Fontes, 2008.

2 - Cf. a dissertação de Mestrado em Ciência Política, de Susan Lewis. “Campos de Concentração em Pernambuco”. Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1995.

3  - Cf. “O Quinze”,  Queiroz Rachel de Rio, José Olympio.

4 - Cf. FOUCAULT, Michel. “Vigiar e Punir”. Petrópolis, Vozes, 1997.

5 - Cf. OLIVEIRA. Luciano. e outros estudos. “Sua excelência, o comissário”. Recife, Massangana, 1987.

6 - Cf.  A tese da dialética da malandragem tem uma ilustre filiação: Antonio Candido de Melo e Souza e Roberto Schwarz. Roberto DaMatta e Roberto Goto. A reelaboração da tese é de Roberto Gotto. “A malandragem pragmática”. Também celebrada na Opera e livro de Chico Buarque de Holanda, “A ópera do Malandro”, uma adaptação da obra de B. Brecht. “A Ópera dos três vinténs”.

7 - Cf. “Sua Excelência, o Comissário”.

Referências Bibliográficas

1 -  DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo, 2016.

2 -  DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: editora Rocco.

3 - FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petropolis, Vozes, 1997.

4 - _______. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

5 - _______. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 2002

6 - LEWIS,Susan. " Campos de Concentração em Pernambuco". Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1995.

7 - QUEIROZ, Raquel de. O Quinze,  Queiroz Rachel de Rio, José Olympio.

8 - OLIVEIRA, Luciano. "Neofascismo, Neomiseria". In: Política Hoje. Recife, editora Bagaço, 2000.

9 - _______. Sua Excelência, o Comissário. Recife: Editora Massangana. 1985.

10 - ZAIDAN, Michel. "Neoliberalismo e Estado", palestra proferida na semana das Ciências Sociais, na UFRPE, em 2019.

11 - _____. "O capitalismo como pandemia mundial", portal eletrônico de notícias Brasil 247. Março/2020

*Michel Zaidan Filho é filósofo, mestre em História e doutor em História Social.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum