Black lives matter?

Pandemia do coronavírus acometeu inicialmente os mais abastados. Agora, com a pressão por reabertura precoce do comércio, Covid-19 matará pretos e pobres da sociedade

Ato antirracista - Twitter/Instituto Marielle Franco
Escrito en DEBATES el

Por Carlos Alberto Trindade*

A abertura precoce do comércio e de outras atividades econômicas em um contexto epidemiológico de franco crescimento do número de casos da Covid-19 - curva ascendente de contaminação e de óbitos - nos faz pensar que, na verdade, estamos sendo muito mais do que um ‘país esquisito’ no cenário mundial.

Estamos, sim, assumindo, conscientemente, a responsabilidade pelas milhares de mortes que, infelizmente, ainda veremos acontecer entre nós. E mais, conhecendo a trajetória que a doença cursou para infelicitar toda a nação, começando pelas camadas mais abastadas e caminhando de forma progressiva e célere na direção de nossos cidadãos mais pobres, não é difícil projetar quais de nós brasileiros nos tornamos a ‘bola da vez’ para compor estas funestas estatísticas. Não é necessário lembrar aqui que, na nossa Sociedade, pretos e pobres sempre foram sinônimos.

Todas as projeções realizadas pelos estudiosos do comportamento da doença no Mundo estão apontando para uma trágica contagem total, que deve ficar entre 100 a 120 mil mortes pela Covid-19 em todo o país. No momento já temos mais de 40 mil. Em outras palavras, ainda faltam morrer, no mínimo, entre 60 a 80 mil.

As curvas de contaminação e mortes continuam ascendentes e, paradoxalmente, intensificam-se as pressões políticas e sociais pela retomada da atividade econômica, especialmente do comércio, mesmo nos estados e cidades com altíssimos índices de infestação.

Argumentos de que a paralisia da atividade econômica poderá produzir efeitos mais catastróficos do que os já amplamente demonstrados como causados pela doença em si têm insuflado estranhas manifestações contra o isolamento social, hoje realizadas por muitos empresários e seus influenciados.

Deve-se observar, aqui, que o histórico da pandemia no Brasil teve uma característica singular de desenvolvimento: acometeu inicialmente os mais abastados, que puderam ir ao exterior buscar o vírus, junto com outras tendências do consumo mundial. Para estes, os grandes e caros hospitais de São Paulo, Rio de Janeiro e outros, conseguiram mover os seus melhores esforços para acolhê-los com a costumeira deferência.

Mas, aos poucos, essa novidade foi repassada progressivamente, numa cascata epidemiológica, para os cidadãos instalados em patamares mais inferiores de nossa escala social e econômica, onde se alastrou rapidamente. Foi nessa hora que, a exemplo do que se fazia em todo o mundo civilizado, entendeu-se que deveríamos adotar fortes medidas protetivas, para minimizar a tragédia que se anunciava.

Fomos, brasileiros de todas as classes sociais, compelidos a nos protegermos em severo isolamento social – ou não tão severos assim - uma vez que a ciência ainda não era capaz de apresentar alternativas terapêuticas ou preventivas para que essa doença passasse como apenas uma ‘gripezinha’.

Foi muito bom vermos a solidariedade sendo redescoberta e praticada entre nós, com marcantes e pungentes ações praticadas a partir das varandas gourmet - e mesmo em outras menos glamourizadas – aplaudindo nossos profissionais de saúde. Nossos artistas criando ‘lives’ e outros entretenimentos visando a superação de todo o desgaste que estava sendo produzido pelo confinamento de todos.

É verdade que os governos e os parlamentos se apressaram em criar formas de socorro financeiro emergencial que, se praticado adequadamente, socorreria a uma importante parcela de brasileiros já previamente invisibilizados pela inescrupulosa concentração de renda em nosso país. Da mesma forma, por parte das redes públicas e privadas de atenção à saúde, acontecia uma forte operação de expansão dos leitos hospitalares, materiais e equipamentos para cuidar dos que adoeciam.

O novo Coronavírus parecia não dar muita importância para isso e seguia, alheio a todos os esforços, acometendo mais e mais brasileiros e, cada vez mais, seguia descendo por nossa pirâmide social.

A atividade econômica semiparalisada já clamava por soluções que respeitassem mais as prioridades dos chamados ‘setores produtivos’ e menos os ‘caprichos’ da história natural da Covid-19.

Brasileiros deste patamar - menos pacientes, mas muito apoiados por uma quase absoluta inação do Governo Federal - começavam a mostrar a sua indignação e passavam a organizar manifestações, provavelmente contra a ‘insensibilidade do vírus’ frente às suas prioridades, clamando por uma imediata retomada da atividade econômica e esperando que a área da saúde apresentasse, tão imediatamente quanto as suas urgências econômicas pretendiam, qualquer cloroquina que fosse para parar a escalada da doença ou que se adotassem modelos esdrúxulos de isolamento vertical ou oblíquo que fosse, mas que pudesse sugerir para toda a população que o pesadelo teria sido dominado.

De modo paralelo ao que acontecia na sociedade, os serviços de saúde travavam batalhas quase insanas, inclusive contra a falta de estrutura adequada em muitos deles, para salvar vidas violentamente afetadas pela doença. Brasileiros morriam aos magotes, a taxas de 1.000 por dia, com centenas de profissionais afetados pelo mesmo inimigo que abatia os seus pacientes. O número total de vidas perdidas ultrapassava os 30 mil e as projeções são de que devemos superar a triste marca de 100 mil brasileiros mortos pelo vírus.

Transcorridos mais de 90 dias deste quadro de horrores, e ainda sem as soluções esperadas da parte da Ciência, percebe-se que começa a acontecer um relaxamento, seja da parte de alguns governantes que, aparentemente, não suportam a pressão pela reabertura do comércio e outras atividades em suas cidades, mas também daquela solidariedade geral que nos acometeu a todos até a algumas semanas atrás. Não se vê mais ninguém cantando ou aplaudindo das nossas varandas de classe média, algumas lives dos artistas perderam o caráter solidário e passaram a ser mera fonte de lucro para os que vivem da arte.

Surgem planos de reabertura experimental de atividades econômicas, quase todos eles severamente balizados pelo que pode vir a acontecer no quadro epidemiológico. Ou seja, se as contaminações e mortes aumentarem após a retomada das atividades, retornaremos ao estágio anterior de isolamento e restará, talvez, pedir desculpa às famílias das vítimas, tipo ‘foi mal’!

O nosso noticiário, para além das mazelas do ‘esconde-esconde’ dos números da pandemia, vem sendo ocupado pelas vozes que ecoam para todo o Mundo, desde o inescrupuloso assassinato ocorrido na pacata Minnesota, gritando a plenos pulmões que é necessária a inclusão daquela parte da população que Caetano Veloso já definia como “ são quase todos pretos, e aos quase brancos pobres como pretos”” nas agendas da tolerância e do respeito da vida em sociedade. Vidas negras importam.

Não é novidade que os brasileiros que vivem maciçamente nas periferias de nossos centros urbanos, onde, em todo o seu percurso social, o novo coronavírus vem encontrando sua morada final, não terem a mesma atenção e cuidados dos cidadãos de “primeira classe”. Se depender do Governo, eles não farão parte, sequer, do noticiário, nem mesmo apresentados como meros números. E o povo a gritar pelas ruas do Mundo: “black lives matter”…

*Carlos Alberto Trindade é médico sanitarista