“Bom mesmo é vadiar”: Rubem Braga aceitaria um presidente vadio?

Na Fórum Folia de hoje, Estevan Mazzuia, nosso Tuta do Uirapuru, imagina uma crônica do capixaba Rubem Braga sobre o momento brasileiro atual, a partir do desfile da Unidos de Jucutuquara de 2013

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Por Estevan Mazzuia *

“Bem-aventurados os que fazem o carnaval, os que não fogem nem se recolhem, mas enfrentam as noites bárbaras e acesas, bem aventurados os gladiadores e Césares e chiquitas e baianas, e que a vida depois lhes seja leve na volta do sonho em que se esbaldam!” 

(Rubem Braga, em “Os Romanos”) 

Quando paro para pensar em tudo que fiz nessa vida, até eu me surpreendo. Já fui metroviário, arqueólogo, animador de festas... Uma falsa polivalência, pois em tudo que já fiz, demonstrei mais força de vontade do que talento. Entretanto, sem falsa modéstia, minha escrita sempre teve algum destaque e o amor por carnaval se aprofundou e virou coisa séria, a ponto de me tornar um julgador. Ou avaliador, termo tecnicamente mais adequado. Fiz cursos diversos e mantive a pretensa polivalência, aprofundando-me em diversos quesitos. Em minha caminhada, tive a honra de avaliar desfiles cariocas. Não, não avaliei Mangueira, Portela e afins... Nada de Sapucaí. O palco dos acontecimentos foi a suburbana Estrada Intendente Magalhães, que liga Madureira a Jacarepaguá, e as escolas eram do último grupo (sim, há muita vida carnavalesca no Rio, além da Sapucaí). Ainda assim, considero meu auge na “carreira”. 

Outro bom momento foram os anos de 2013 e 2014, quando avaliei as escolas de samba do carnaval capixaba, que ganharam destaque nos últimos anos pela qualidade do trabalho desenvolvido e por desfilarem um fim de semana antes do carnaval oficial, reduzindo a concorrência por audiência e permitindo a presença de artistas de outras cidades. É comum que puxadores de samba-enredo, coreógrafos, mestres-salas, porta-bandeiras e carnavalescos, entre outros profissionais do samba carioca, façam em Vitória uma espécie de “esquenta” para o carnaval do Rio. 

Em 2013 avaliei harmonia, o canto da escola, penalizando aquelas cujos integrantes não cantassem o samba com fluência (somente o refrão, por exemplo). A última escola a desfilar era a verde, vermelho e branco, Unidos de Jucutuquara (bairro de Vitória, cujo significado do curioso nome é “poço de lama preta”), com o enredo “A centenária noite do Sabiá da Crônica: entre pássaros, palavras, chiquitas e baianas”, celebrando o centenário de Rubem Braga, desenvolvido por Sury de Souza.  

Conhecido como Sabiá da Crônica, tendo escrito mais de 20 mil delas, Braga nasceu (há exatos 108 anos, em 12 de janeiro de 1.913) e cresceu em Cachoeiro do Itapemirim. Morou em Paris, onde viveu um romance com a atriz Tônia Carrero, antes de estabelecer-se numa cobertura em Ipanema, na qual cultivava diversas plantas que atraiam pássaros, uma de suas paixões. Sofria de câncer da laringe e faleceu de insuficiência respiratória, aos 77 anos, em 1.990, após dar uma festa de despedida a seus amigos. 

Campeã em sete oportunidades (a última em 2009), a escola trazia a coruja, símbolo da agremiação, e da sabedoria. À frente do abre-alas, uma enorme máquina de escrever. Seus dois mil componentes lembraram a infância de Braga, a formação em Direito, a atuação como jornalista (trabalhando em Niterói, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Cuba, EUA, Argentina, Chile, Itália e Marrocos) e como correspondente na Revolução Constitucionalista de 1.932 e na Segunda Guerra Mundial. 

Uma escultura do homenageado trazia-o sem a mão direita, na última alegoria. Um dos problemas que fizeram com que a escola terminasse em 3º lugar ao final da apuração. Não é pouco. Difícil imaginar Braga escrevendo 20 mil crônicas, à máquina, sem sua mão direita. 

Apesar de ter participado da fundação do Partido Socialista Brasileiro, Braga nunca foi militante. Nacionalista, chegou a apoiar o Golpe de 1.964, tornando-se, logo depois, crítico da política econômica de Castelo Branco, da censura e da violência impostas pelos militares. Não suportava o populismo de Getúlio e Adhemar de Barros. Durante a Era Vargas, escreveu: 

“Tem-se afirmado, levianamente por certo, que o governo do Brasil impede, ou dificulta, a entrada das reservas financeiras que procuram, entre nós, aplicação remunerada. Não é verdade. Aquilo que fazemos questão, e temos o direito de o fazer, é que os capitais aqui invertidos não exerçam tutela sobre a vida nacional, respeitem as nossas leis sociais e não pretendam lucros exorbitantes, próprios das explorações coloniais ou semicoloniais. Preciso é reconhecer que o Brasil não se enquadra nessa classificação... Só nos pode interessar, sem dúvida, a inversão de recursos financeiros. Queremos, porém, que se fixem e produzam... Enriquecendo nossa economia.” 

É verdade que Braga também não simpatizava com Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes. Mas foi um defensor da reforma agrária e dos direitos trabalhistas para o homem do campo. As cavalgadas e os exercícios aquáticos do pseudoatleta, o entreguismo, e tantas outras barbaridades cometidas pelo inquilino do Palácio do Planalto, certamente seriam temas para outras 20 mil crônicas do Sabiá, assim apresentado no samba de Diego Tavares, Dilson Marimba, Marina Zanchetta, Thiago Bandeira e Thiago Daniel: 

“Crônica da vida

Querido capixaba da Nação

Cigano andarilho de partida

Às viagens para imensidão” 

Braga afirmava que “bom mesmo é vadiar”. Mas, definitivamente, não suportaria as “mandrionices” de nosso parvo. Braga não daria trégua a Bolsonaro, pois era um nacionalista legítimo, não um lambe-botas de imperialistas. Que falta faz o talento de Braga para eternizar, em bem redigidas linhas, a indignação que nos consome há dois anos, ao ver a destruição que se abate sobre nosso país, apoiada pelos incautos de sempre... 

A propósito, a Unidos de Jucutuquara foi a única escola que conseguiu arrancar uma nota máxima de minha exigente caneta. Espero que essas linhas, muito aquém das que Braga escreveu, possam eternizar minha gratidão pela emoção sentida naquele dia, já devidamente expressa em lágrimas. E, acima de tudo, possam representá-lo, onde quer que esteja, na insana luta travada por nós contra a sistemática destruição de nosso país, comandada pelo inepto que ocupa a chefia de nosso Estado. 

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.